Bolsonaro e a modernização conservadora, por Jorge Alexandre Neves

Bolsonaro e a modernização conservadora

por Jorge Alexandre Neves

Em uma entrevista que deu para o programa Roda Viva da TV Cultura (1), o saudoso Ariano Suassuna faz uma afirmação muito interessante e importante. Ele acreditava que a guerra de Canudos foi o mais importante evento da história brasileira, não seria possível compreender o Brasil sem entender bem Canudos.

Esse desafio proposto por Ariano não é dos mais fáceis, mas penso que ele tem toda a razão. Canudos carrega a alma do Brasil, com todos os seus mais profundos e terríveis pecados.

A partir dessa lembrança de Ariano Suassuna e Canudos, proponho-me a entrar em um debate recente sobre o fascismo tupiniquim travado entre intelectuais de esquerda (2) e intelectuais autodenominados liberais (3). Em um artigo recente aqui do GGN (4), eu mostrei um gráfico produzido pela BCA Research com a Great Getsby Curve – que mostra a forte associação entre desigualdades de estoque e desigualdades de fluxos intergeracionais da renda – colocando o Brasil totalmente dentro da área de países com elevada propensão ao populismo (países com altos níveis de desigualdade de renda, de estoque ou de fluxo). Isso não deveria ser novidade para nenhum analista atento. Afinal, todos conhecemos bem a tradição despótica do Brasil. O que nem todos costumam reconhecer é que esta tradição está fortemente associada às nossas profundas desigualdades.

A questão da cultura despótica brasileira é uma coisa que chama a atenção no debate entre os intelectuais, citado acima. Primeiramente, por ambos os grupos de pensadores concordarem com sua existência e relevância. Em segundo lugar, porque entre os intelectuais liberais aflora um inconfundível elitismo (curiosamente, não claramente percebido por Christian Dunker em sua ótima resposta), ao ressaltarem a “cultura despótica na base da sociedade brasileira” (5).  Apenas na base, cara pálida? Não, a cultura despótica está presente em todos os estratos sociais brasileiros, assim como também há defensores da democracia em todos eles. Chama a atenção, também, como mesmo analistas progressistas cometem o ato falho de identificar valores democráticos apenas com parte da elite. Em um bom artigo publicado no El País (6), Carla Jiménez comete este deslize, ao afirmar que: “Os resultados do Datafolha estão aí para lembrar aos defensores da democracia que também estamos no topo da pirâmide do Brasil”. Curiosamente, dois parágrafos acima, ela havia louvado o “encontro virtual ‘histórico’ entre integrantes do Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra e o ministro Gilmar Mendes”. Ora, será que o MST – formado por brasileiros da base da pirâmide socioeconômica – não é constituído majoritariamente por defensores da democracia (7)? Precisamos – pelo menos nós do campo progressista – parar com essa postura elitista de associar o nepotismo com a base e os valores democráticos com o topo da pirâmide socioeconômica (8).

Voltando ao debate entre os intelectuais progressistas e seus colegas liberais, referido acima, os analistas de esquerda que participaram do debate estão corretos ao ressaltar as associações oportunistas das elites liberais com o fascismo ou formas assemelhadas de ação política. Isso está bem documentado desde que Karl Marx publicou o Dezoito Brumário de Luis Bonaparte. Portanto, é um fenômeno mais ou menos universal que as elites – em particular a plutocracia – apoiem o fascismo quando as estratégias liberais de dominação e exploração se fragilizam. Todavia, essas possibilidades são mais prováveis quanto menos o processo de modernização se deu em sua plenitude de caráter liberal. Não é à toa que em um país marcado por um forte processo de modernização conservadora, como o Brasil, a probabilidade de sucesso do populismo (e, neste momento, de um populismo de direita, com fortes semelhanças com o fascismo, como ressaltado pelos intelectuais de esquerda do debate da Folha de São Paulo) esteja entre as mais altas, como revelado pelo gráfico do BCA Research.

Canudos (9) foi marca do processo de modernização conservadora que se iniciava no Brasil junto com a República. Mais do que em qualquer outro país do continente, em terras brasileiras o regime republicano resultou de mais um – entre muitos – pacto de elites, e decorreu (nada mais sintomático) de um ato autoritário, um golpe militar. A modernização conservadora, no Brasil, tem sido desde sempre marcada, pois, por duas características: a) uma desigualdade extrema (cuja marca original está na enorme concentração fundiária) associada a uma exclusão socioeconômica só comparável àquela de países como a África do Sul do apartheid (embora sem um caráter racial tão claro; refiro-me ao “eles querem um país de 20 milhões e uma democracia sem povo”, afirmação que Mino Carta costuma atribuir a Raymundo Faoro) e; b) um veio autoritário e uma cultura despótica.

A enorme desigualdade mantida pela modernização conservadora no Brasil criou certa repulsa na base da pirâmide socioeconômica aos valores típicos da modernidade: racionalidade, secularismo, impessoalidade etc. Como bem definiu Max Weber, a modernidade é, fundamentalmente, um “cárcere de ferro da racionalidade”. Essa prisão é, em princípio, profundamente desagradável. Para deixar isso ainda mais claro, o mesmo Weber foi buscar outra expressão forte ao dizer que a modernidade era o “desencantamento do mundo” (claro que no sentido de esvaziamento dos valores mágicos, místicos, religiosos). Portanto, para que a modernidade seja desejável, ou mesmo suportável, ela precisa dar algo em troca para as pessoas, a saber: afluência econômica e equidade social. Em sociedades nas quais o processo de modernização não fornece ambas, o “cárcere de ferro da racionalidade” e o “desencantamento do mundo” são insuportáveis, repugnantes, para os excluídos. Canudos foi exatamente isso, a rejeição de uma modernidade excludente e autoritária! O apelo ao sebastianismo, por exemplo, foi um sintoma.

Outra marca importante de nossa modernização conservadora está no caráter estamental dos profissionais brasileiros (10). Estes, que seriam para Antony Giddens “os homens da modernidade”, no Brasil tornaram-se mais uma marca de nosso processo excludente de modernização, como bem definido por Edmundo Campos Coelho, ao afirmar: “É difícil não se deixar impressionar pela permanente disposição de nossos profissionais para o despotismo… São histórias de elites saturadas de valores excludentes, antidemocráticos, antipovo” (mais uma lembrança de que a cultura autoritária, despótica, não é típica apenas da base da pirâmide socioeconômica brasileira, muito pelo contrário). Todos os principais símbolos da modernidade no Brasil estão embebidos de elementos conservadores, autoritários, despóticos, excludentes. Inclusive nossa democracia (11).

Muitos dos atores políticos que são classificados como defensores da democracia, no Brasil, promoveram ou aprovaram um golpe de Estado iniciado com um ato flagrantemente ilegal, no dia 16 de março de 2016. A partir daí, apoiaram de forma entusiasmada um governo que iniciou o processo mais rápido de elevação da desigualdade já documentado no país, destruindo direitos sociais conquistados, com muito esforço, desde a década de 1930 e, em particular, a partir da CF-88. Como um dos principais esteios da modernidade liberal, a democracia precisa entregar certa afluência econômica para todos e equidade social. Sem isso, jamais conquistará um forte apoio da maior parte da população.

Eu penso ser improvável que o governo Bolsonaro tenha condições econômicas e administrativas de manter por muito tempo o apoio da população com menor nível socioeconômico que conquistou com o auxílio emergencial. Todavia, o cenário pode mudar com, por exemplo, um novo boom de commodities (devo esta observação ao meu amigo Luiz Kehrle) e alguns bons ajustes administrativos. Se não for Bolsonaro, pode ser outro. A insistência em reformas (que só penalizam a maior parte da população) por parte de supostas forças democráticas (como aquelas representadas pelos presidentes das duas casas legislativas) manterá o Brasil como um país pronto para o estabelecimento de governos populistas, despóticos, autoritários. E o mais provável, obviamente, é que esse governo seja de direita. O Brasil está pronto para o fascismo tupiniquim!

Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
  1. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=WUjcJNtSaqU&t=938s
  2. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml
  3. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/08/associar-liberalismo-ao-fascismo-nao-e-intelectualmente-honesto.shtml.
  4. Ver: https://jornalggn.com.br/artigos/a-volta-dos-que-nao-foram-por-jorge-alexandre-neves/.
  5. Ver: https://blogdodunker.blogosfera.uol.com.br/2020/08/07/resposta-ao-que-nao-foi-dito-sobre-liberalismo-fascismo-e-bolsonaro/.
  6. Ver: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-08-15/na-fila-da-caixa-ninguem-le-a-revista-piaui.html.
  7. Alguém poderá afirmar que o MST tenha cometido ações contrárias ao Estado Democrático de Direito. Pode até ser. Mas também é inegável que Gilmar Mendes também o fez, quando, com base em uma “prova” (que nem prova era) flagrantemente ilegal, colhida pelo então juiz Sérgio Moro, impediu a posse do ex-presidente Lula como ministro da Casa Civil do governo Dilma. Não é por isso que vou dizer que o ministro Gilmar Mendes não seria um defensor da democracia. Adicionalmente, vale a pena destacar que esse encontro virtual de Gilmar Mendes com o MST lembra muito algo que Ariano Suassuna também costumava falar, o encontro do “Brasil oficial” (um ministro do STF) com o “Brasil real” (um movimento de trabalhadores rurais). Com frequência, esses encontros são ações violentas contra o “Brasil real”, como ocorreu em Canudos e há poucos dias, na ação absurda da PM-MG contra o Quilombo Campo Grande. Espero que o encontro de Gilmar com o MST leve a resultados diferentes.
  8. Afinal, quem tem sido desde sempre a base principal de apoio a Bolsonaro? Aqueles com maiores níveis socioeconômicos! Da mesma forma, observei em outro artigo aqui no GGN que as migrações de apoio se dão por questões de ganhos ou perdas de caráter econômico para todos os estratos sociais (ver: https://jornalggn.com.br/artigos/e-a-economia-estupido-por-jorge-alexandre-neves/).
  9. É interessante ver, na mesma entrevista citada acima, Ariano Suassuna falar sobre o momento em que percebeu a diferença entre a guerra de Canudos e a revolta de Princesa. Ele costumava ver o Brasil – e essa visão marcaria sua obra prima “A Pedra do Reino” – como tendo no conflito Rural X Urbano o cerne da questão nacional. Só mais adiante, contudo, conseguiu perceber que este não seria o conflito fundamental para entender o Brasil, o que lhe fez interromper a trilogia que resultaria de sua obra prima. Não foi algo fácil para ele – que teve seu pai oligarca assassinado em decorrência do conflito entre elites rurais e urbanas – reconhecer que, a revolta de Princesa, na qual sua família teve grande participação, era um movimento de “privilegiados do campo” (em suas palavras), muito diferente de Canudos. Muito provavelmente, isso explica porque Princesa nunca foi vencida, ela se dissolveu a partir de um acordo entre elites, ao passo que Canudo precisava ser e foi massacrada!
  10. Ver: https://jornalggn.com.br/saude/profissionalismo-estamental/.
  11. Ver: https://jornalggn.com.br/artigos/qual-democracia-a-de-justo-verissimo-por-jorge-alexandre-neves/.

 

 

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

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