Democracia sempre requer mais democracia, daí a vertigem que o Brasil vem sofrendo, por Álvaro Miranda

Democracia sempre requer mais democracia, daí a vertigem que o Brasil vem sofrendo

por Álvaro Miranda

Talvez seja despropositada a celeuma acerca de uma suposta morte da esquerda junto com a insistência sobre a necessidade de uma autocrítica do PT. Óbvio que a esquerda não morreu, embora esteja ostensivamente desarticulada, apesar dos muxoxos de alguns setores que se ofendem, achando que falar mal da esquerda é incensar positivamente a direita. 

O fato é que perguntas devem ser feitas, mas parece que alguns setores mais sensíveis, que cobram a tal autocrítica do PT, não querem, assim como o próprio PT, enfrentar determinadas questões, todas elas relacionadas sobre as razões pelas quais a esquerda não tem conseguido mobilizar amplas camadas da sociedade contra as medidas do governo Bolsonaro e do seu antecessor. Os últimos quatro anos (o marco é o golpe de 2016) mostram que não é só o PT que não consegue.

O processo de políticas públicas ocorre em meio a avanços e recuos e não, diferentemente, pelas mãos de demiurgos como no Olimpo dos devaneios abstratos. A história registra vários exemplos em que grandes líderes e partidos políticos também erraram, muitas vezes, em meio aos acertos de suas ações e objetivos.

Costumo dizer que democracia implica sempre o desejo de mais democracia, razão de sua própria garantia. Não por uma impetuosidade desenfreada, abstrata e ingovernável de insaciabilidade política. Mas, sim, porque ela pressupõe e exige a existência de governo e regras que garantam a liberdade de ação e criatividade de indivíduos, grupos e movimentos. Isso implica crítica e autocrítica permanente. 

Democracia suscita mais democracia porque nela os indivíduos se sentem mais à vontade para desenvolver sua criatividade a todo momento – e essa criatividade pressupõe a transformação constante da vida. Numa democracia genuína, quem elege critica seus eleitos, sem sofrer represálias, uma vez que voto não é cheque em branco, mas sim uma “aposta institucionalizada”, conforme expressão do cientista político argentino Guilherme O’ Donnell.

Indo um pouco mais longe no passado, reporto-me a John Dewey, que falava, no fim do século XIX, em democracia como ideia necessária em todas as arenas da vida: democracia nas instituições políticas, nas escolas, nas famílias, nas relações conjugais, na vizinhança, nos meios de comunicação, nos clubes, etc. Nesse sentido, entre erros e acertos, entre avanços e recuos, como diferenciar, em termos estruturais do ponto de vista da macroeconomia, os governos do PT e de FHC? 

Ambos contribuíram para a expansão da democracia, mesmo que no processo neoliberal da atual fase do capitalismo – contradição que mostra o outro lado da moeda no sentido da desarticulação da sociedade. Vejam que recorro à palavra “talvez” desde o início porque na “doxa” o conhecimento científico não tem como corresponder ou se igualar aos métodos, por exemplo, das ciências matemáticas ou aos oráculos dos pretensiosos.

Além disso, “doxa” não é, necessariamente, incompatível com a episteme em ciências sociais, mesmo considerando a necessidade de objetividade científica na situação em que sujeito e objeto de conhecimento se confundem. Essa reflexão sobre a necessidade de autocrítica do PT é pertinente, sim, com o cuidado, porém, de não alimentarmos um antipetismo acrítico que só tende a engrossar a boçalidade disseminada pelo bolsonarismo. 

A autocrítica não se restringiria ao PT, mas em relação ao que está acontecendo com outros setores da esquerda, vale dizer, comunistas, socialistas e outras correntes em diferentes plataformas e arenas nos últimos tempos. Enquanto ficarmos somente no debate de questões compartimentadas, tais como, racismo, identidarismo, sexismo, etc., a lentes ficam embaçadas no ajuste de foco para os problemas da macroeconomia.

Fazer autocrítica parece truísmo no processo de políticas públicas. Até alguns setores neoliberais no Brasil e no mundo estão fazendo autocrítica. Arrisco a hipótese no sentido de que, dentre outros motivos imediatistas e estruturais, o golpe que derrubou Dilma Rousseff em 2016 – e que completa quatro anos em abril – teve como um dos objetivos, além da rapinagem geopolítica com o conluio de empresários e autoridades judiciárias nacionais, barrar o processo de expansão da democracia. 

Isso, não em termos moralistas e esdrúxulos porque alguns gostam de ditadura e detestam a cor vermelha, mas porque, quanto mais democracia, mais questionamento sobre a economia. Quanto mais democracia, mais luta por mudanças na economia, mais estruturação e fortalecimento da economia nacional. A verdade é que a maioria dos erros do PT está vinculada à não contribuição para o aprofundamento de uma crítica à economia política. O PT tem que assumir que fez governos neoliberais.

Afinal, caiu a ficha histórica: a democracia não é um valor absoluto, abstrato e único, adaptável para qualquer sociedade – e nem se garante por instituições legais. Nem por governos de qualquer espectro ideológico. György Lukács tem uma frase interessante, mais ou menos assim: o stalinismo acabou provocando o próprio estranhamento do marxismo. 

Por incrível que pareça, o voto pode ser, contraditoriamente, uma arma contra a democracia – e o bolsonarismo e o hitlerismo provam isso – embora constitua o principal instrumento de “accountability vertical” da sociedade: a única forma que permite, sem golpe ou guerra, tirar do governo, em eleições rotineiras, aqueles que não atendem às nossas expectativas ou tentam melar as regras do jogo. 

A expansão da democracia e sua consolidação se dá pela dinâmica da sociedade como um todo. Pode ser por iniciativas a partir do governo, mas também (e principalmente) a partir da sociedade, contra ou favor do governo que ela mesma elegeu dentro da correlação de forças do processo de contradições e conflitos de classes sociais.  

Esse processo é sempre ideológico e ocorre na disputa por recursos políticos, econômicos e culturais. O Estado é um feixe de conflitos, não um ente abstrato e isento representativo de todos, conforme a acepção ingênua ou desinformada. 

Costumo dizer também que a direita, mesmo com força militar e aos berros, não consegue se manter depois de um certo tempo e limites impostos pela economia política – e o tempo e esses limites dependem, obviamente, de cada situação nacional. Economia política é economia de tempo – e o que alguns chamam de ciclos no capitalismo não mais é do que o processo de adiamento de crises.

Em suma, o PT cometeu erros, sim. Porém, como se costuma dizer, o antipetismo disseminado ocorre mais pelos seus acertos do que por seus equívocos. A analogia é instintiva no ser humano. Novamente, recorro a György Lukács, para quem, entretanto, coisas aparentemente semelhantes podem ser muito diferentes, e o contrário também é verdade: coisas que parecem diferentes apresentam muitas semelhanças.

Lula cometeu erros, sim, assim como Getúlio, Churchill, Jango, Che Guevara, Allende e muitos outros. Perguntas sobre o passado e o presente são importantes e necessárias, sem dúvida, para seguir adiante. A vida pode ser de outra maneira, comparada com o passado, mas o exercício do futuro do pretérito nada garante em termos de sentidos seguros.

Redação

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