Em tempos de isolamento social, por que não pensar?, por Rômulo Moreira

Em tempos de isolamento social, por que não pensar?

por Rômulo Moreira

Em 2005, Francis George Steiner escreveu “Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento”[1], obra em que usa como mote a afirmação de Schelling, contida no “Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana”, de que “o pensamento é rigorosamente inseparável de uma melancolia profunda e indestrutível, atribuindo à existência humana uma tristeza fundamental, inescapável.[2]

A partir da frase de Schelling, ele indaga se temos “o direito de perguntar por que não deverá o pensamento humano ser alegre” e se podemos “tentar esclarecer algumas razões para tal.” Para estas perguntas, ele aponta dez supostos motivos para a tristeza do pensamento.

Partindo das premissas de que “o pensamento é ilimitado, que podemos pensar sobre tudo, e qualquer coisa, e de que aquilo que fica fora ou para além do pensamento é rigorosamente impensável (situando-se fora da existência humana), afirma Steiner que “a infinitude do pensamento é um marcador crucial da eminência humana”, pois “possibilita o domínio do homem sobre a natureza e, dentro de certas limitações, tais como a enfermidade e o sofrimento mental, sobre o seu próprio ser.” (grifei).

Daí uma contradição insuperável: “Nunca saberemos até onde o pensamento pode ir no que diz respeito à soma da realidade. Não sabemos se aquilo que nos parece sem limite não é, na realidade, absurdamente estreito e irrelevante. Quem nos poderá dizer se a grande parte da nossa racionalidade, análise e percepção organizada não é constituída por ficções pueris?

Eis o primeiro motivo para o pensar: “Esta contradição interna (aporia), esta inevitável ambiguidade, é inerente em todos os atos do pensamento, em todas as conceptualizações e intuições. Experimentem escutar atentamente a torrente do pensamento e, no seu centro inviolável, irão ouvir dúvida e frustração.”

Para estabelecer o segundo motivo, o autor começa afirmando que “o pensamento é incontrolável”, pois “mesmo quando estamos a dormir e, presumivelmente, quando estamos inconscientes, a corrente segue o seu curso. Apenas muito raramente estamos nós a controlar.” Respirar – salvo por períodos curtos – e pensar são “dois processos que os seres humanos não conseguem fazer parar enquanto viverem e essa incapacidade de fazer parar o pensamento é um constrangimento aterrorizador. Ele impõe uma servidão de um despotismo e peso singulares. A cada instante das nossas vidas, quer acordados quer dormindo, habitamos o mundo pela via do pensamento.”

Como percebemos, “a cada instante, atos do pensamento estão sujeitos a intrusões e um amontoado ilimitado de elementos externos e internos irão interromper, desviar, alterar, baralhar qualquer desenvolvimento linear do pensamento”, de uma tal maneira que “uma visão ou um som, não importa quão marginais, qualquer experiência tátil, qualquer ponta de cansaço ou aborrecimento, a irrupção do desejo repentino, irão apropriar-se do pensamento.

Assim, essa monotonia do pensamento só seria possível “unicamente por meio de uma concentração treinada e disciplinada e de abstenção de toda a diversão”, tal como ocorre, talvez, com “alguns místicos, certos adeptos da meditação, que procuraram atingir o vazio, um estado de consciência inteiramente receptivo porque vazio. Aspiraram a habitar o nada.”

Porém, “tais purezas, tais raios de pensamento inquebrantável são acessíveis apenas a uns poucos, e por norma a sua duração é breve, pois há indícios, embora intermitentes, de que os poderes implícitos da meditação extrema podem esgotar-se numa idade bastante precoce. A matemática pura de primeira ordem e a física teórica são prerrogativa dos jovens e prodígios na mnemónica raramente chegam a amadurecer.”[3] Neste ponto, ele lembra de Arquimedes que “não desistiu da sua análise de secções cónicas, embora esta concentração significasse a morte.” E assim, chega-se à segunda causa da “melancolia indestrutível: o pensamento vulgar é muito mais frequentemente um empreendimento confuso e amadorístico.”

A terceira razão para a tristeza inseparável do pensamento reside na constatação inexorável de que “pensar é uma coisa supremamente nossa; encontra-se enraizada na mais profunda privacidade do nosso ser. É também um dos atos mais comuns, mais gastos e repetitivos. Esta contradição não pode ser resolvida.”

Steiner afirma que “ninguém, nada, pode penetrar comprovadamente nos meus pensamentos. Dizer que outro ser humano ´leu` os nossos pensamentos não é mais do que uma figura de retórica.”         Diz ele que nem mesmo “a tortura pode, sem margem de dúvida, arrancar os meus pensamentos mais íntimos[4], pois “os pensamentos são o nosso único bem assegurado”, constituindo-se “a nossa essência, a nossa familiaridade ou alienação do eu.” Eis porque, muitas vezes, somos compelidos a ocultar determinados pensamentos “da nossa consciência, para os silenciar internamente por meios que a psicologia qualifica de amnésia ou regressão.”

Logo, nem razões biológicas[5], emocionais, sexuais ou ideológicas, nem mesmo “uma vida de coexistência doméstica ou profissional, nos irá permitir decifrar, sem deixar margem para qualquer incerteza, os pensamentos de outra pessoa.”

Nada obstante – e eis um paradoxo! – “este centro inacessível da nossa singularidade, o mais íntimo, privado e impenetrável dos nossos bens é, simultaneamente, uma banalidade sem fim”, já que os nossos pensamentos já “foram pensados, eles estão a ser pensados milhões e milhões de vezes por outros. São infinitamente banais e desgastados. Produtos usados. Mesmo nos atos e momentos mais privados da nossa existência – no sexo, por exemplo – os componentes do pensamento são clichés, repetidos até à exaustão.”

Assim, “pensar um pensamento pela primeira vez (e como o poderíamos saber?) é extraordinariamente raro.” E, lembrando Pope, “é a forma verbal, não o conteúdo, que dá uma impressão de novidade.”

Aqui, faz-se referência a Einstein (que afirmava não ter tido, durante toda a sua vida, mais do que duas ideias originais) e a Heidegger, cuja máxima era a de que “todos os pensadores maiores têm somente um único pensamento que expõem e reiteram ao longo das suas obras.” Steiner chama tais afirmações, em ambos os casos, de “hipérboles de modéstia.”

(Aliás, segundo Heidegger, “pensar é algo que se revela se nós mesmos pensamos e é preciso que nos disponhamos a aprender a pensar, e, tão logo nos entregamos a este aprendizado, admitimos que ainda não estamos na capacidade de pensar”).[6]

O que entendemos por originalidade, para Steiner, na verdade, “é quase sempre uma variante ou inovação na forma, nos modos de execução, nos meios disponíveis (bronze, pintura a óleo, guitarras elétricas)”, nenhuma sendo original “num sentido rigoroso da palavra, seja na filosofia, nas artes, na literatura, na teoria política e social.”

Algo como um pensamento absolutamente original, algo sem nenhum precedente, “é a ambição dos escritores, pintores, compositores e pensadores.” Qualquer pensamento pode já ter sido anteriormente pensado, até por um analfabeto, pelo enfermo: “estes pensamentos ficaram perdidos porque até mesmo aquele que os teve não lhes prestou atenção nem lhes deu forma articulada”, pois “cada ser vivo – homem, mulher e criança – é um pensador.”

O quarto motivo para a melancolia indestrutível do pensamento consiste em uma “antinomia fundamental entre as aspirações da linguagem em ser autónoma, em se libertar do despotismo da referência e da razão e a busca desinteressada da verdade.” Nesta parte do livro, o escritor enfrenta a questão da verdade, tema profundamente discutido em todos os tempos do pensamento humano. Para ele, mesmo as verdades “experimentalmente demonstráveis e empiricamente aplicáveis das ciências estão apoiadas em pressuposições teoréticas, filosóficas, em ´paradigmas` flutuantes, sempre suscetíveis de serem revistos ou descartados”, razão pela qual só se pode dizer que se atingiu a verdade tautologicamente, como acontece na matemática ou na lógica simbólica.

Portanto, quando o processo para se atingir a verdade não é tautológico – no sentido utilizado em lógica -, “todas as demais afirmações de verdade, sejam doutrinárias, filosóficas, históricas ou científicas, não estão imunes ao erro, à falsificabilidade, revisão e extinção.” É verdade que alguns filósofos tentaram, mas, pergunta Steiner, “quantos Espinosas, quantos Freges ou Wittgensteins existem, e até que medida estes ascetas da verdade prevaleceram?

O quinto capítulo inicia com uma afirmação: “Pensar é de tal modo perdulário que chega a ser difícil acreditar.” Pensar cansa; intuitivamente “experimentamos alguma coisa análoga à fadiga muscular, após períodos prolongados de pensamento sequencial, de reflexão sob pressão.” Isso, segundo o autor, se dá, por exemplo, com os matemáticos, os especialistas de lógica formal, os programadores informáticos, os jogadores de xadrez, criptologistas, os tradutores simultâneos, e outros que “resolvem problemas nas ciências exatas e aplicadas, todos atestam fenómenos de exaustão, de ´colapso`.”

Citando como exemplo Darwin, afirma que “o pensador importante seria aquele que se apercebe e explora uma intuição ou um conceito decisivo, aquele que estabelece uma descoberta ou conexão crucial. É aquele ou aquela que investe, quase de uma forma avara, num ato-pensamento ou numa observação, explorando todo o seu potencial.”

Ocorre que a maioria das pessoas, ainda que tenham pensamentos, “não lhes prestam atenção particular, não os ´agarram`, nem abrem caminho com decisão a fim de os realizar num plano concreto”, perdendo-se “na avalancha indiferente do pensamento negligenciado.”

Indaga, então: por que somos “incapazes de condensar, armazenar ordenadamente – tal como o faz uma bateria elétrica – a voltagem possivelmente frutífera gerada pelos arcos e pelas sinapses insones do nosso ser mental?” Esta vem a ser a quinta razão para esse “fundamento sombrio” do pensamento.

Na sexta parte do livro, Steiner fala da esperança: “a totalidade das nossas futuridades, das nossas projeções, antecipações e planos – sejam rotineiros ou utópicos – acarreta um potencial de desilusão, de autoilusão profilática. Há na esperança um vírus de frustação”, pois “esperar, aguardar, almejar não deixa de ser um jogo, cuja única certeza é a morte.

Por outro lado, há “um vazio revelador, uma tristeza da saciedade que se seguem à realização dos nossos desejos. A famosa lassidão do pós-coito, o cigarro tão aguardado a seguir ao orgasmo são precisamente aquelas coisas que servem de medida para o vazio entre antecipação e substância, entre a imagem confabulada e o acontecimento empírico.” Então, chega-se à sexta fonte da tristeza do pensamento: “Esperar contra toda a esperança.”

A sétima razão para aquele “véu de pesar” do pensamento, seria a constatação de que “o pensamento encobre tanto, ou provavelmente mais ainda, do que revela: o pensamento mais inspirado é impotente face à morte.”  E esta opacidade do pensamento “impossibilita que conheçamos sem sombra de dúvida aquilo que qualquer outro ser humano está a pensar.” Aqui, ele repete que “não podemos ter nenhuma percepção indubitável sobre os pensamentos alheios e mesmo nos momentos e nos atos de extrema intimidade, o amante não consegue abraçar os pensamentos do seu amado.”

Assim, “nenhuma luz final, nenhuma empatia de amor, revela o labirinto da interioridade de outro ser humano. O amor mais intenso, possivelmente mais fraco do que o ódio, é uma negociação, jamais conclusiva, entre solidões.”[7] Então, temos a oitava razão para a dor do pensamento.

No penúltimo capítulo, atesta-se que “todos nós vivemos as nossas vidas numa maré e num magma incessantes de atos-pensamentos, mas apenas uma parcela muito restrita da espécie dá provas de saber pensar. A capacidade de pensar pensamentos que valem a pena ser pensados, quanto mais serem expressos e preservados, é comparativamente rara. Não são muitos os que entre nós sabem pensar com uma finalidade exigente, quanto mais original.

Então, chega-se à nona fonte da melancolia do pensamento: “a inaptidão do pensamento grandioso e da criatividade aos ideais de justiça social”, pois “para o génio não há democracia, apenas uma terrível injustiça e um fardo mortal. Existem uns poucos, como Hölderlin[8] disse, que se veem impelidos a agarrar o relâmpago com as próprias mãos.”

O último dos motivos é a constatação final de que o “domínio do pensamento, da inquietante velocidade do pensamento exalta o homem acima de todos os seres vivos. No entanto, ele torna-o um estranho em relação a si mesmo e à enormidade do mundo”, pois “o pensamento humano parece ter horror ao vazio.”

Neste ponto, Steiner faz reflexões sobre Deus, afirmando que o “homo tornou-se sapiens e os processos cerebrais evoluíram quando se colocou a questão de Deus” que parece “ser própria e exclusiva da espécie humana”, já que é “concebível que formas mais elevadas de vida animal contornem a consciência, o mistério das suas próprias mortes.” Apenas o ser humano é capaz “para afirmar ou negar a existência de Deus, e a existência e a morte, na medida em que pertencem a Deus, são os objetos perenes do pensamento humano.”

Questões como a existência, a mortalidade e o divino jamais poderão ser subtraídas de “nossa humanidade”, pois, finaliza Steiner, “é a vertigem da interrogação que ativa uma vida examinada. 

Portanto, que aproveitemos o isolamento de uma melhor maneira, ainda que, por vezes, sofrida o bastante: pensemos!

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS                                                  

[1] Publicado em Portugal em novembro de 2015, pela Editora Relógio D`Água Editores.

[2] Publicada em Portugal na Coleções Edições 70, Editora Almedina, 1993.

 

[3] Certamente não concordam com Steiner os zen-budistas, visto que o elemento central do zen-budismo é a “busca da iluminação espontânea, como resultado do esvaziamento da mente, sem a necessidade de argumentos racionais, textos ou rituais. Em outras palavras, o zen cria as condições ideais para que a confusão mental, que impede a clareza da mente, seja substituída pelo insight direto. Na meditação zen, o que vemos não pode ser descrito”, pois o seu objetivo “é esvaziar o conteúdo da mente, que não faz parte dela.” (O Livro das Religiões, São Paulo: Globo Livros, 1ª. edição, 2014, páginas, 160/163).

[4] Hélio Pellegrino afirmou que quando o torturado se cala e não morre, o torturador fica “reduzido a uma sombra achatada, na poeira e na lama. O torturador, se não destrói a sua vítima, está destruído. O silêncio dela o condena à morte. Ao mesmo tempo, não pode eliminá-la fisicamente. A morte corporal do torturado levanta frente ao torturador um infinito muro de silêncio. A não fala do torturador, com sua morte, ganha valor absoluto, e implica a absoluta negação do torturador.” (prólogo do livro “Em busca do tesouro”, de Alex Polari, Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1982, p. 15).

[5] Talvez, segundo o autor, a exceção estaria no caso de gêmeos verdadeiros ou siameses, que poderiam “representar um caso-limite.”

[6] HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Petrópolis: Editora Vozes, 2006, p. 111.

[7] Segundo Steiner, possivelmente, “o ódio seja um dos nossos gestos mentais mais vitais e vibrantes de energia. Ele é mais intenso, mais coeso do que o amor (tal como Blake o intuiu). Está muitas vezes mais próximo da verdade do que qualquer outra revelação do ser.

[8] Hölderlinlin foi um poeta lírico alemão.

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