Estado Laico e a Pauta dos Costumes Retrógrados, por Fernando Nogueira da Costa

Estado Laico e a Pauta dos Costumes Retrógrados

por Fernando Nogueira da Costa

Entre os 35 projetos de lei ou Propostas de Emendas Constitucionais (PECs), considerados “prioritários” pelo Poder Executivo, encontra-se 9 na pauta de costumes. Desvia a atenção dos eleitores e, em consequência, de seus representantes no Congresso Nacional da prioritária retomada do crescimento da renda e do emprego.

O armamentismo, projeto da “bancada da bala”, ganhou atenção especial: o capitão-miliciano pediu a aprovação do projeto para modificar as regras para registro, posse e comercialização de armas de fogo. Solicitou também a análise da proposta para ampliar a lista de categorias com direito a porte de armas e para determinar quais são as normas aplicáveis a militares em situações de Garantia de Lei e Ordem (GLO).

O monopólio da posse de armas por parte dos militares, respeitadores da Constituição, junto com o monopólio da emissão da moeda nacional, são dois sustentáculos da soberania do Estado. Quebrá-lo significa dar armas ao poder paramilitar. Paralela e oficiosamente, os milicianos no Rio de Janeiro exploram a população periférica.

Entrou também na agenda prioritária do governo conservador a possibilidade de Ensino doméstico ou domiciliar. Em países culturalmente avançados, como a Alemanha e a Suécia, homeschooling é considerado crime e os pais podem ser multados, presos e até mesmo perderem a custódia dos filhos.

Porém, há cerca de 63 países onde a homeschooling não é proibida expressamente por lei. No Brasil, a modalidade de ensino não está prevista em lei. Portanto, é caracterizada como prática não legalizada, previsto no artigo 246 do Código Penal.

Essa infração ocorre quando o pai ou a mãe deixa de garantir a educação primária de seu filho. Pretende preservar os valores morais, culturais, religiosos e ideológicos da família e inibir o contato das crianças com a sociabilidade laica do ambiente escolar.

O laicismo é uma doutrina defensora da ausência de qualquer obrigação de caráter religioso nas instituições governamentais. Visa a não intervenção da religião no Estado.

Laico se refere a quem não pertence ou não está sujeito a uma religião ou não é influenciado por ela. Sua origem etimológica significa “do povo”. Está relacionado com a vida secular (mundana) e com atitudes profanas de quem não é submisso às “regras sagradas ou divinas”, impostas por religiões com cultos a entes sobrenaturais por serem apresentados como onipresentes, onipotentes e oniscientes. Não percebem a contradição lógica entre a onipotência e a onisciência.

Um comportamento secular é o oposto de um comportamento eclesiástico, direcionado para atividades da Igreja. A qualidade de ser laico pressupõe a não interferência da igreja em assuntos políticos e culturais. É um pacto social de tolerância entre os diversos membros de religiões, os ateus – quem não crê em qualquer “ser sobrenatural” – e os agnósticos. Estes consideram os fenômenos sobrenaturais inacessíveis à compreensão humana. É espécie de “negacionismo científico” a recusa de fazer investigação deles.

Quando se defende um Estado laico, refere-se à neutralidade sobre questões religiosas. Deve haver liberdade para os cidadãos manifestarem a sua fé religiosa, qualquer uma delas, sem haver controle ou imposição de uma religião específica. O antônimo de laico pode ser santo, religioso, devoto, crente ou submisso. Islã significa submissão religiosa.

De 80% a 90% dos muçulmanos são sunitas e 10% a 20% são xiitas. Cerca de 13% de muçulmanos vivem na Indonésia, a quarta maior população (260 milhões) e o maior país muçulmano do mundo, 25% vivem no Sul da Ásia, 20% no Oriente Médio, 2% na Ásia Central, 4% nos restantes países do Sudeste Asiático e 15% na África Subsaariana.

Comunidades islâmicas significativas também são encontradas na China, na Rússia e em partes da Europa. Comunidades convertidas ou imigrantes são encontradas em quase todas as partes do mundo. Estima-se existir entre 1,41 e 1,57 bilhão de muçulmanos.

O cristianismo, por sua vez, tem três vertentes: o Catolicismo Romano (subordinado ao papa), a Ortodoxia Oriental (após o Grande Cisma em 1054) e o Protestantismo (após a Reforma do século XVI). O protestantismo fraciona-se em vários grupos menores.

Os sistemas religiosos e espirituais com maior número de adeptos em relação a população mundial são: cristianismo (28%); islamismo (22%); hinduísmo (15%); budismo (8,5%); pessoas sem religião (12%) e outros (14,5%) como religiões étnicas indígenas. A dedução lógica e óbvia é a necessidade do pacto social de tolerância entre os humanos.

Karen Armstrong (1944-…), decepcionada com a vida religiosa, abandonou o convento, em 1969, e orientou-se para os estudos de religiões. Tem uma dúzia de livros publicados no Brasil. Recomendo “Em nome de Deus: o Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo” e “Campos de Sangue: Religião e a História da Violência”.

Nesse último, publicado em 2014, ela afirma: “a imagem agressiva da fé religiosa é tão indelével em nossa consciência secular a ponto de ser comum depositarmos os pecados violentos do século XX nas costas da ‘religião’ e a banirmos para o deserto da política”.

Mesmo quem admite a religião não ter sido a responsável por toda a violência e pelas guerras da raça humana, acha seu caráter ser essencialmente beligerante. O “monoteísmo” é especialmente intolerante com adeptos de outros deuses ou, pior, com ateus. Daí os casos das Cruzadas, Inquisição, Guerras Religiosas dos séculos XVI e XVII, perseguição aos judeus, ataques terroristas cometidos em nome da religião, etc.

No Ocidente, vemos “religião” como um sistema coerente de crenças, instituições e rituais obrigatórios, centrados em um Deus sobrenatural, cuja prática é sobretudo privada e hermeticamente separada de todas as atividades “seculares”. Mas, em outras línguas, o traduzido como “religião” quase invariavelmente se refere a algo maior, mais vago e mais abrangente como todo um modo de vida.

No início do período moderno, europeus e americanos começaram a separar religião e política porque presumiram as disputas teológicas da Reforma terem sido responsáveis pelas Guerras Religiosas. Essa convicção é o mito de origem do Estado-nação soberano.

O “Iluminismo protestante” se tornou o Éthos nacional do Estado secular. É possível tirar a religião do Estado, mas não a religião da Nação.

Para Karen Armstrong, a ideologia secular era uma inovação tão radical quanto a moderna economia de mercado (capitalismo) inventada pelo Ocidente em simultâneo. Para não ocidentais, sem passarem por esse processo de modernização, ambas as inovações pareceriam não naturais e até incompreensíveis.

Para eles, nunca foi apenas uma questão de o Estado “usar” a religião, pois os dois eram indivisíveis. No mundo pré-moderno, a religião permeava todos os aspectos da vida.

No início do Estado de Israel, seus líderes foram agressivamente laicos. A violência imposta aos palestinos, as guerras contra os vizinhos e a resposta palestina ocorreram não por motivos religiosos, mas por um nacionalismo secular em disputa territorial.

Karen Armstrong defende sua tese a respeito do “pecado constante do nacionalismo secular: sua incapacidade de tolerar minorias”. Cria empatia no leitor a respeito desse viés nacionalista ter distorcido as visões religiosas tradicionais.

No Ocidente, o estabelecimento do Estado-nação secular visava frear a violência da religião, mas, para pessoas no Oriente Médio, o nacionalismo secular parecia uma força violenta e destrutiva, privando-os do apoio espiritual sempre tido como esteio.

Dessa forma, o Oriente Médio foi brutalmente reiniciado no novo sistema de opressão e violência, nascido durante o período colonial. Suas leis foram substituídas por códigos estrangeiros, seus antigos rituais abolidos, e seu clero, executado, empobrecido e publicamente humilhado. Colonizadores tentaram impor o nacionalismo secular à força.

De volta ao Brasil, em retrocesso cultural, os projetos da bancada evangélica emergem dos principais interesses dos políticos evangélicos: a manutenção de seus privilégios. Entre eles, a isenção tributária e concessões de TVs e rádios e o avanço de pautas conservadoras, como a proibição do aborto, mesmo para os casos legalmente previstos, a proibição da discussão sobre gênero e prevenção da homofobia nas escolas, o retrocesso de direitos de grupos vulneráveis, como os travestis e transexuais.

Essa pauta de costumes da bancada evangélica se mistura com a da bancada da bala. Em comum, para se tornarem soldados submissos, os recrutas precisam passar por uma iniciação exaustiva, não muito diferente daquela pela qual passam os religiosos, para dominar suas emoções.

Os indivíduos são desconstruídos para serem remontados como meros combatentes obedientes. Sofrem despersonalização, usam uniformes, abandonam privacidade, têm relações sociais forçadas, cronogramas apertados, privação de sono, desorientação seguida de ritos de reorganização de acordo com códigos militares, regras arbitrárias e punição rigorosa. Os métodos de embrutecimento são similares àqueles usados por regimes ditatoriais, quando militares são ensinados a torturar prisioneiros políticos.

Daí a tolerância tem limites estabelecidos pela civilização. Não permite retrocesso no estado atual de cultura social, caracterizado por um relativo progresso no domínio das ciências, da religião, da política, das artes, dos meios de expressão, das técnicas econômicas e científicas. Exige a manutenção do atual refinamento dos costumes. PEC não torna o tempo reversível: a história não volta atrás. Tortura nunca mais!

Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Bancos e Banquetas: Evolução do Sistema Bancário com Inovações Tecnológicas e Financeiras” (2021). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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