Future-$e: a boiada passa na Universidade Pública, por Alexandre Filordi

Future-$e: a boiada passa na Universidade Pública

por Alexandre Filordi

No Diário Oficial de 27 de maio, edição 100, seção 1, página 106, há uma série de Despachos do Presidente da República. Dentre eles, encontra-se o despacho 302: “Encaminhamento ao Congresso Nacional do texto do projeto de lei que Institui o Programa Universidade e Institutos Empreendedores e Inovadores – FUTURE-SE” (http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/despachos-do-presidente-da-republica-258706434 Grifos meus).

Naomi Klein acertou em cheio em A doutrina do choque. A sanha capitalista usa todo e qualquer desastre natural para, sorrateiramente, impor profundas alterações sociais que, em tempos normais, seriam impossíveis. Em estado de choque, a população tem seus sentidos e suas consciências afetados e desorbitados. É assim que se aproveita para se “passar a boiada”, “dar canetadas” e alterar os feixes políticos “de baciada”, como celebrou o Ministro do Meio Ambiente.

O projeto FUTURE-SE não foi analisado, submetido a um diálogo aprofundado e paciente nas Universidade Federais, porém, apenas de modo aligeirado. Tampouco o FUTURE-SE foi escrutinado sob o múltiplo e o complexo contexto socioeconômico regional atinente às Universidades Federais.

Mas eis que ele segue para o Congresso, já como projeto de lei, debaixo dos sussurros dos mortos da pandemia. Nesse momento, as Universidades estão tomadas com questões urgentes: os impasses entre demanda de formação e a precarização de seus alunos com falta de recursos materiais e internet para se conectarem; mitigar o impacto da pandemia com ações extensionistas e pesquisas científicas; elaborar planos futuros de retomada de suas atividades; resistir às supressões de recursos públicos etc.

O encaminhamento do FUTURE-SE, na atual circunstância epidêmica, é mais um dos atos covardes, violentos e unilaterais do atual governo. Na expressão de Blanchot, trata-se de acossar a existência com o seu “despotismo de botas”. Sob a batuta de um Ministro da Educação que não sabe reger, o encaminhamento do FUTURE-SE é uma tentativa desesperada de um afogado político tentar mostrar serviço. Nesse caso, a boiada passando sobre a Universidade Pública é apenas um detalhe.

Seja como for, é urgente se ter consciência que o FUTURE-SE reduz a Universidade Pública a um carrasco neoliberal que só sabe puxar a corda da guilhotina para excluir cabeças, algo absolutamente normal na exclusão neoliberal. Em um país com proporções socioeconômicas desiguais e distorcidas, não são todas as Universidades que têm espaço físico, convergência epistemológica e regionalidade econômica para se transformar em empresa empreendedora.

Exemplo de duas universidades de ponta localizadas no Sudeste: a Universidade Federal de Lavras – UFLA é usada como paradigma de Universidade empreendedora e autossuficiente em áreas importantes: ela trata parte de seu esgoto, possui placas de energia solar, faz reuso de água etc. – maravilha. Detalhe: a UFLA está assentada em 600 hectares; seus cursos convergem expertise para tudo o que ela implementa em sua vasta e farta área, ou seja, é como se ela fosse um laboratório aberto, aplicando o que ensina. Mas a Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP não dispõe de 600 hectares de área; seus campi estão cravados na conurbação complexa do sufocamento imobiliário; um de seus campi é exclusivamente especializado em Ciências Humanas, ou seja, o FUTURE-SE faz do incomparável um pasto homogêneo para a boiada passar.

Como se vê, o FUTURE-SE pode produzir uma desigualdade enorme entre as universidades e lançar umas contra as outras. O seu pressuposto central é o mérito pela concorrência, estrangulando, até inviabilizar, campus inteiros e áreas de conhecimento por completo, isto é, aquelas incapazes de captar recursos financeiros. Ademais, o princípio solidário entre distintas áreas pode terminar, uma vez que passarão a ser valorizadas áreas capazes de captar recursos em detrimento de outras. Aliás, o princípio do financiamento público do ensino, da pesquisa e da extensão é o de justamente impedir isso e assegurar o papel universal de todas as áreas de saberes, conhecimentos e empirias.

Não obstante, a Universidade também corre o risco de ser reduzida a uma prestadora de serviços aos interesses e às demandas comerciais, ao que é rentável nas bolsas de valores e ao que é circunscrito ao utilitarismo lucrativo. Consequentemente, o papel crítico-social da Universidade pode ser fragmentado e reduzido a uma plataforma de autopromoção publicitária enviesada.

Seria mais coerente designar tal projeto de FUTURE-$E, pois são cifrões o cerne do negócio. Com efeito, a Universidade Pública se transformará em outra coisa, deixando de ser instituição de agenciamento humano, compreendendo TODAS as áreas de conhecimento e de práticas da vida, como lastro inegável da ampla cultura humana. O utilitarismo opressor decorrente daí prenuncia “perigosas transações” enquanto, depois, descobriremos que “dormia a nossa pátria mãe tão distraída”, nos termos da canção de Chico Buarque.

É preciso urgentemente nos manifestar no Congresso contra esse projeto de lei que destrói a Educação Pública. Ao mesmo tempo, temos de fazer chegar à sociedade civil esse retrocesso, denunciando-o, para ressaltar o lugar da Universidade Pública, laica, gratuita e de excelência em nosso país.  E que seja ante de a boiada passar, deixando o lastro de seus dejetos e o odor sufocante do fim da Universidade Pública.

Alexandre Filordi (EFLCH/UNIFESP)

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