J. Carlos de Assis: o drama da estabilidade da democracia brasileira, desde Platão

Platão fazia um juízo negativo da democracia não porque não fosse boa, em si, mas porque era intrinsecamente instável e sujeita aos ataques de demagogos. Na política moderna, a estabilidade da democracia norte-americana se tem sido apresentada como prova inequívoca de que é possível a convivência de democracia e estabilidade política secular . Onde os experimentos democráticos resultam em instabilidade, anarquia e ditadura, a desculpa corriqueira é que os respectivos países não estavam maduros para a democracia.

Vejamos os níveis de verdade que há nisso. A democracia norte-americana se assenta em dois partidos políticos, o Republicano e o Democrata. Na institucionalidade do país, por razões econômicas é virtualmente impossível a eleição de um presidente ou de uma parcela significativa do Congresso fora dessas duas legendas. Além disso, no balanço de poder entre Executivo e Legislativo, a força real, exceto em situações de guerra, repousa sobre esse último. Se acaso for eleito um presidente fora do bipartidarismo ele seria totalmente monitorado pelo Congresso.

A ideia de que há alternância de poder nos Estados Unidos quando um democrata sucede a um republicano, ou vice versa, é um engodo. A estabilidade do sistema norte-americano repousa justamente no fato singular de que os dois partidos aparentemente antagônicos repousam nos mesmos fundamentos, a saber, a defesa da livre empresa e do capitalismo. Eventuais divergências partidárias são resolvidas pelo denominador comum da defesa de princípios, ora predominando os liberais em economia, ora os liberais em política.

Norberto Bobbio tem um ensaio magnífico, “Kant e as duas liberdades”, pelo qual é possível traçar, desde a origem, as diferenças entre o Partido Republicano e o Democrata. Para o republicano, a liberdade é não ter limite; para o democrata, a liberdade é exercer o direito de estabelecer os próprios limites. Não há antinomia real entre as duas posições. Uma é complementar da outra. Não obstante, há espaço entre as duas para posições intermediárias, e é isso o que acontece na prática na convivência partidária norte-americana.

Na derrota de Al Gore para Bush, não obstante todas as evidências de fraude na contagem decisiva de votos na Flórida, o derrotado tratou logo de acatar a decisão para não mergulhar o país numa convulsão social de proporções catastróficas. Com isso, atendia ao apelo profundo da sociedade civil pela estabilidade fundamental para os negócios. Mais recentemente, quando o Congresso insistia em recusar o aumento do teto da dívida pública do país, foi principalmente Wall Street que convenceu o Partido Republicano a ceder.

Os dois grandes partidos políticos norte-americanos não são realmente dois, mas o duplo aspecto de um mesmo partido, cujas normas de convivência são fundamentais para a estabilidade. Se percebermos as sutilizas da política chinesa, veremos, a seu turno, que o PCC não é exatamente um partido único, mas um partido complexo com duas alas principais, uma conservadora e outra liberal, que competem pelo poder sob regras de estabilidade. A tentativa dos movimentos de Hong Kong de abrir espaço para eleições fora do PCC, caso prosperasse, violaria esse pacto fundamental de poder que corresponde à essência da institucionalidade chinesa. Por isso, provavelmente não prosperará, como não prosperou em 1999 os protestos na Praça da Paz Celestial.

Uma democracia pura, do tipo da imaginada e questionada por Platão, está sujeita desde sempre a grandes perigos. Antes da Segunda Guerra, pouquíssimas “democracias” no mundo resistiram à tentação totalitária. Depois da guerra, o Leste caiu sob ditaduras comunistas (estes, sim, de partido único), e no Ocidente regiões como a América Latina foram varridas pelo autoritarismo. Com o fim da União Soviética a “democracia” tem sido menos uma realidade efetiva e mais um instrumento ideológico oportunista dos Estados Unidos em seu jogo geopolítico para desestabilizar o que restou de aliados da Rússia.

Essa longa abordagem preliminar é para dizer que nossa jovem democracia corre risco. Temos um sistema totalmente vulnerável à corrupção. A existência de quase 40 partidos, e cerca de dois terços deles com representação parlamentar, exige do Poder Executivo uma tremenda engenharia para conquistar e conservar maiorias. Não é uma limitação do PT. É de qualquer partido que viesse a ganhar a eleição, pois todos teriam que fazer composições. O Presidente depende dos parlamentares, e os parlamentares acham-se no direito, e de fato o tem, de participar do Governo com cargos e diretorias de estatais. E esse é um canal de possíveis desvios, totalmente fora do controle do presidente, como é o caso da Petrobras.

Se a melhor forma de enfrentar uma tentação é ceder a ela, talvez o meio de resolver o problema seria passar de vez ao Parlamentarismo. Contudo, os precedentes não são muito convincentes. Países como Itália se submeteram a processos de grande instabilidade no pós-guerra com a queda sucessiva de gabinetes. Um bom expediente, talvez, fosse a cláusula de barreira para representação parlamentar no Congresso. Isso evitaria a balbúrdia que será a próxima legislatura na Câmara: haverá 28 líderes partidários ou de blocos, cada uma com as próprias prerrogativas de encaminhamento de matérias importantes. Imaginem: onde todo mundo vota e justifica votos, ninguém vota.

Tenho pensado exaustivamente na questão da reforma política e, depois de considerar inócua a constituinte exclusiva proposta pela Presidenta, passei a considerar melhor essa saída em face de difíceis alternativas. O Congresso ordinário não estabelecerá cláusulas de barreira, não acabará com financiamento de empresas em campanhas, não vai abolir a venda de espaço em televisão nas campanhas eleitorais, não acabará com o Fundo Partidário, e não estabelecerá o financiamento público de campanhas sujeito a regras de representatividade. Talvez uma constituinte exclusiva o faça. Salvo melhor juízo!

 

*Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB.

Redação

Redação

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  • Excelente texto

    Realmente, somos uma democracia muito jovem e sujeita a erros partidários, que nos podem retirar o direito de escolher nossos governantes livremente, máxime onde estiver o interesse externo.

    A reforma política se impõe e o texto nos deu uma grande aula, concluindo pela proposta da constituinte exclusiva.

    E ela - acrescento aqui - não deve ser votada pelos membros do Congresso, mas por uma assembléia constituinte eleita para esta finalidade. É difícil o caminho, reconheço, mas a nossa Constituição já vem maculada pela não eleição da assembléia constituinte - como aconteceu em 1946. Agora, estamos cada vez mais, colhendo os frutos deste grande equívoco, quando a Constituição de 88 foi votada pelos congressistas eleitos para um mandato e não para esta finalidade.

  • Sobre o sistema eleitoral

    Sobre o sistema eleitoral norte americano e as virtudes de sua democracia só me ocorre acrescentar que nas últimas eleições somente 35%, 35% do eleitorado compareceu às urnas. As hipóteses e explicações são diversas mas ninguém chegou ao ponto de querer impugnar o processo ou proferir que os candidatos não obtiveram a "maioria absoluta de votos"...

    Não me agrada muito a ideia de uma constituinte. 1) Como diz WGS não serao "suecos" ou anjos que comporão essa assembléia; 2) em vez de botar o país pra andar, o mais provável é que o paralise; 3) A montanha pode parir um rato, ou seja, depois de tanto esforço e expectativa pode sair um frankenstein rejeitado por todos gerando uma frustração enorme; 4) Mudanças pontuais sobre pontos sobre os quais pode-se chegar a algum consenso, como, por exemplo, acabar como coalizão proporcional e financiamento de campanha por pessoa jurídica, transmitem uma sensação de avanço; ainda que seja para uma ou duas eleições pra frente, o que reduziria as resistências de quem obteve sucesso por uma regra e tende a querer conservá-la, portanto

    Suponho que o ponto 4 dá boa resposta às preocupações o autor do artigo. Há simulações - não disponho delas aqui - que com o fim das coalizões proporcionais haveria uma muito grande redução do número de partidos com representação na câmara.

    Sobre o financiamento de campanha, além de pessoas jurídicas não serem povo; de gerarem desigualdade na formação da vontade, os demais argumentos em sua defesa são pífios. O principal é que o financiamento vai continuar existindo por fora, porque as empresas vão continuar injetando dinheiro em seus candidatos mesmo ao arrepio da lei... Ora, seguindo essa linha de raciocínio revogue-se todo o código penal porque, afinal, tem sempre alguém disposto recalcitrar. Ademais, diminuiria a dificuldade para a justiça eleitoral fiscalizar as contas.

  • mudanças

    A cláusula de barreira é imprescindível.

    Democratizar os meios de comunicação outro passo.

    Reforma do stf para ser apenas guardião da constituição, não vitalício, nada de sentenças sobre galinhas roubadas.

    Tommasi di Lampedusa alertava o sobrinho que é possível: "cambiare tutto per non cambiare niente."

  • Constituinte

    Uma Constiruinte exclusiva será eleita sob a guarda da atual que privilegia o poder econômico ou seja menos democracia ainda.

  • Democracias

     Eh sempre prazeroso ler artigos tão bem fundamentados e escritos. Salve melhor juizo - e nenhum argumento até aqui me convenceu - que se faça uma Constituinte Exclusiva. 

  • Belo Artigo

    Belo Artigo. Em relação a Democracia Americana, ela foi construida por uma elite que sempre quis contruir uma grande Nação. Quando as divências põe em risco esse objetivo, eles resolvem entre si. Talvez apenas na abolição de escravidão, esse pacto tenha sido quebrado. Aqui é um vale tudo pelo poder, mesmo que tenham que convocar tropas estangeiras. 

  • Uma salada completamente mal

    Uma salada completamente mal digerida, nada a ver. Os dois partidos são iguais, a diferença é um engodo.

    Que insanidade. Os dois Partidos são COMPLETAMENTE diferentes, um Republicano do Texas, como meu cunhado, nem pode ouvir o nome Obama, ele fica apoplético. Em todos os grandes temas do Pais os dois Partidos tem posição diferente.

    Ah, mas é uma lastima que ninguem pode ser eleito Presidente fora desses partidos, diz o genial artigo. Mas é obvio, se são esses os dois Partidos do Pais como é que alguem pode ser eleito fora deles, ora pois, genial, como diria o Manuel da

    padaria da praça;

    O negocio, como sempre foi, é encontrar defeitos na democracia americana, que lixo, heim, boa é a democracia no Piaui.

    • AhAhAh, André! Conheço certa

      AhAhAh, André! Conheço certa cidade no estado do Rio de Janeiro, onde certa feita existiam dois coronéis. Um, oriundo da antiga Arena e o outro do PMDB. Os dois só faltavam se matar e não podiam um ouvir falar do outro. Quando um ocupava o governo (os dois se alternaram por muito tempo) desmanchava o que o outro havia feito e assim por diante...Até que um dia apareceu uma candidata popular e progressista que conquistou a Prefeitura e até se reelegeu. Não é que os dois coronéis se aliaram contra ela e assim esta não conseguiu fazer o sucessor!

      Moral da história: os panacas longe do jogo de poder podem até se matar entre si, mas os jogadores sabem direitinho o que fazem...

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