O liquidacionismo brasileiro, por Rodrigo Medeiros

O liquidacionismo brasileiro, por Rodrigo Medeiros

Em um instigante artigo publicado na revista Inteligência, os professores Luiz Fernando de Paula e José Luís Oreiro avaliaram a fraca recuperação cíclica da economia brasileira após a recessão iniciada no segundo trimestre de 2014. Como síntese, destaco que “a agenda de Bolsonaro/Guedes não enfrenta o problema crucial da economia brasileira, que é uma crônica falta de demanda, que requer uma outra agenda de ajuste fiscal, mais gradualista e de longo prazo, e abrindo espaço para o crescimento dos investimentos públicos. A agenda econômica do governo é uma espécie de reedição do liquidacionismo de Hoover-Mellon”.

O processo de liquidação de empresas e de bons postos formais de trabalho segue o seu curso entre nós. Nesse sentido, aqueles que se autodenominam de “centro democrático” não divergem da agenda econômica em curso. Afinal, muitos dos seus experientes integrantes estiveram alinhados e afinados com a agenda do governo anterior, de Michel Temer. Com o desgaste dos políticos e dos partidos, figuras desse centro foram buscar em um apresentador de programa de auditório um rosto aceitável para o projeto que defendem. Tal projeto, entretanto, apresenta semelhanças com o que foi efetivado na ditadura do general Pinochet, em um contexto de grande e brutal repressão social.

Tendo sido formado como colônia de exploração e com larga tradição escravocrata, o Brasil possui dificuldades que desembocaram na República, desde 1889. A política conservadora dos governadores, na Primeira República, o coronelismo político e a construção de um pacto oligárquico e antissocial tiveram na ideologia do darwinismo social a sua sustentação e justificação “científica”, como bem mostrou o historiador José Murilo de Carvalho. O Estado mínimo para o povo, portanto, não é ideologia nova entre nós. Um Estado não desenvolvimentista tampouco é projeto novo. Esse projeto de Estado, por outro lado, estaria aberto a sugestões e necessidades do capital e já há riscos latentes de crescimento das atividades criminosas, como aquelas que se desenvolveram no Estado do Rio de Janeiro a partir da constituição de milícias.

O cenário é, infelizmente, de grande cinismo no debate público. Os neoliberais defendem suas reformas, ou seja, o aprofundamento do liquidacionismo e do desmonte das estruturas de Estado social-democrático. Prometem um oásis caso o País siga de forma ortodoxa as receitas que geraram recentemente uma grande contestação social no Chile, cuja redemocratização foi tutelada pelo general Pinochet, pelas Forças Armadas e pelo poder econômico privilegiado na ditadura.

Em uma matéria recente do jornal El País, divulgando um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), destaco que “a estagnação econômica da América Latina abala o mercado de trabalho e atinge com especial força o segmento mais jovem da população. O desemprego entre os menores de 25 anos – que é, junto com a informalidade, o grande cavalo de batalha dos países da região nos últimos anos – tornou-se um traço estrutural das economias”. Ao invés de um Plano Marshall, a América Latina sempre foi orientada a cumprir um Plano Morgenthau, de viés desindustrializante e explorador de recursos naturais. Não é surpresa, portanto, que a região tenha permanecido no subdesenvolvimento e com desigualdade social extrema.

Segundo alerta da OIT, “1 em cada 5 menores de 24 anos que procuram trabalho não encontra. Além disso, a maioria dos que estão contratados enfrenta condições precárias: informalidade, salários baixos em relação ao custo de vida, escassa estabilidade no emprego e quase nula oferta de programas de formação por parte dos empregadores”. O emprego de jovens se contraiu em 11 países, quase 90% da força de trabalho ocupada na região – Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, México, Paraguai, Peru e Uruguai. Para aqueles que trabalham, 6 em cada 10 atuam na informalidade e 22% nem estudam e nem trabalham.

A competitividade da economia brasileira vem caindo. De acordo com matéria do The Intercept Brasil, assinada por João Romero, “em termos absolutos, num total de 774 produtos, saímos de 155 indústrias competitivas em 2015 para 130 em 2018. Uma queda de 16%”. Como resposta liquidacionista, o ministro da Economia pretende acelerar a abertura comercial, sem se preocupar com a qualidade dos postos de trabalho e o avanço da precarização no mercado de trabalho. O darwinismo social da República Velha retornou ao campo da formulação de políticas públicas. A adesão brasileira ao Acordo de Compras Governamentais, por exemplo, desmontaria a capacidade de induzir o desenvolvimento de setores e firmas nacionais. Infelizmente, não constam preocupações nos campos políticos e ideológicos da extrema-direita brasileira e do autodenominado centro democrático em relação aos empregos decentes e de qualidade.

Em síntese, pondera Romero, “o governo atual não só abriu mão completamente da tarefa de planejar e direcionar o processo de diversificação produtiva, como tem reduzido drasticamente os recursos públicos alocados em infraestrutura, ciência e tecnologia”. Vantagens competitivas não são estáticas no mundo. Elas precisam ser construídas a partir de políticas públicas de estímulos à iniciativa privada, e em alguns momentos até de defesa das empresas nacionais. Ainda segundo Romero, “com a abertura comercial, o câmbio desvalorizado dificilmente será suficiente para equiparar as empresas brasileiras às gigantes americanas, europeias e asiáticas, que estão numa categoria acima e sempre anabolizadas pelos auxílios e subsídios de seus governos. Isso pode acabar reduzindo o crescimento esperado para os próximos anos”.

Resta saber até que ponto o apoio organizado ao aprofundamento do neoliberalismo não desembocará em uma crise social maior entre nós logo adiante. Como dizia o grande economista John Kenneth Galbraith, o inimigo da sabedoria convencional não são as ideias, mas a marcha dos acontecimentos.

 

Rodrigo Medeiros

Rodrigo Medeiros

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