O tijolo comunista, por Antonio Lassance

da Carta Maior

O tijolo comunista

Paulo Freire dizia que era alérgico a regimes totalitários. Se definia antes como um cristão e humanista – e não como um comunista. Mas há controvérsias.

Sua teoria da educação e o método de alfabetização que a traduz para a prática são baseados no diálogo e em questões concretas do cotidiano. Isso orienta a própria escolha de palavras significativas à alfabetização, como “ti-jo-lo”. Se o diabo está no detalhe, o comunismo de Paulo Freire devia estar lá nesse tijolo. Só pode.

No livro biográfico O Educador: um perfil de Paulo Freire (publicado pela editora Todavia em 2019), Sérgio Haddad, doutor em história e filosofia da educação pela USP, conta a vida e os percalços do alfabetizador que se tornaria internacionalmente reconhecido pelas maiores universidades do mundo, mas que foi incansavelmente perseguido, de forma grotesca, pela ditadura que se instalou no país em 1964.

Falecido em 1997, Freire permanece vivo e ativo no debate sobre educação e política do país. Falem bem ou falem mal, se fala muito dele pelos quatro “cantos” do Planeta – se confiarmos na quadratura do círculo.

A biografia intelectual feita por Haddad narra detalhes dos requintes de estupidez do inquérito aberto contra Freire, em uma época em que um festival de besteiras assolava o país – o famoso Febeapá de que falava Sérgio Porto.

Preso e perseguido sistematicamente após o golpe, o educador resolveu atender ao apelo de pessoas como o católico ultraconservador, Alceu Amoroso Lima (vulgo Tristão de Ataíde), para que se exilasse. O conselho foi providencial para evitar que o pernambucano amanhecesse com a boca cheia de formigas.

Ele foi primeiro para a Bolívia, sem lenço e quase sem documento, pois nunca havia providenciado um passaporte. Não imaginava que alfabetizar brasileiros um dia seria considerado crime e que, por isso, fosse precisar sair do país.

FARINHAS DO MESMO SACO?

Sérgio Haddad afirma categoricamente que Freire não era comunista. De fato, em 1964, não era. Naquela época, quem estava lá era aquele que os estudiosos do mestre chamam de “o primeiro Freire”. Diante do inquisidor em seu Inquérito Policial Militar, o professor negou peremptoriamente que fosse comunista. Mas, depois de tudo, principalmente depois de Pedagogia do Oprimido, ficou difícil Paulo Freire não ser qualificado – por alguns – e acusado – por outros – de comunista. Hoje, então, isso é impossível. Tá difícil negar comunismo até em FHC, mesmo com provas sobejas de que ele não merece o qualificativo.

O que parece ter acontecido com Freire foi o mesmo fenômeno que tomou conta de Jesus Norberto Gomes e de Graciliano Ramos. Jesus, empresário farmacêutico criador do famoso Guaraná Jesus, foi preso em 1935, acusado de ligação com o comunismo por ter a prática contumaz, mal vista entre outros empregadores do Maranhão (imaginem o Maranhão na década de 30!) de distribuir parte dos lucros de sua empresa com os empregados.

O mesmo ocorreu com Graciliano Ramos, preso em 1936. Os crimes? O escritor tinha um longo retrospecto de frequentar saraus literários, coisa de comunista. Também criou muitos inimigos por ter negado favores quando foi prefeito de Palmeira dos Índios, entre 1928 e 1930. Nunca houve um prefeito como ele, mas, ao deixar o cargo, a elite da cidade provavelmente comentou: “pelo menos tiramos o Graciliano”.

O que teria acontecido a Jesus, Graciliano e Freire para terem se tornado comunistas? É possível que os três tenham experimentado do mesmo guaraná? Ou então, de tanto serem acusados de algo, resolveram abraçar a causa? Isso é mais comum do que se imagina. Exemplo? Cansados de serem chamados de urubus, macacos e porcos, torcedores do Flamengo, da Ponte Preta e do Palmeiras uma hora transformaram o apelido em mascote.

Chaplin, que foi “acusado” de ser judeu por Hitler, simplesmente não se deu ao trabalho sequer de negar que fosse, embora não fosse. O mesmo Sérgio Porto, criador do Febeapá, quando perguntado sobre um boato de que ele seria homossexual, embora não fosse, tirou de letra fazendo piada: “o pessoal exagera um pouco”.

Michel Foucault, quando questionado se era estruturalista ou pós-estruturalista, disse simplesmente “eu sou Michel Foucault”. Sartre explicou aos críticos de seus estudos sobre Flaubert que, se Flaubert era pequeno burguês, nem todo pequeno burguês era Flaubert. Sérgio Haddad poderia ter se saído com algo parecido. Ou seja, Paulo Freire é Paulo Freire e ponto.

MAS, E O MARX? E O FIDEL E O GUEVARA?

A referência de Paulo Freire ao marxismo se torna clara apenas em Pedagogia do Oprimido, escrito em 1968. Mas isso é bem posterior à gênese de sua concepção e práticas educativas. Sua teorização mais sistemática sobre educação começa em 1959, quando escreve Educação e Atualidade Brasileira (quando concorria a um cargo de professor), e se completa enquanto método quando se desenvolvem as experiências práticas de alfabetização realizadas pelo Movimento de Cultura Popular, em Recife (1962), e, principalmente, pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte, em Angicos (1963).

A teoria da educação que surge em Paulo Freire é a sistematização de um processo de aprendizado teorizado, praticado e reformulado. Fazendo jus a seu princípio básico, Paulo Freire aprendeu a educar educando, e a teorizar sobre educação tendo os pés no chão. Esse processo que começou em pequena escala, no Recife, ganhou seu efeito demonstração mais badalado justamente nas famosas 40 horas de Angicos, com 300 alunos.

Pedagogia do Oprimido já é um livro que traz algumas referências a Marx, a quem o educador considera como uma leitura do mundo essencial para se pensar a realidade. Também faz elogios rasgados à revolução cubana e a seus principais líderes, Fidel e Guevara, mais em notas de rodapé. Mas Freire não tinha aderido ao “comunismo internacional”, que tinha como principais expoentes a União Soviética e a China. Cuba era um patinho feio diante dos dois gigantes. Freire estava na verdade muito mais embalado pelos ares da Teologia da Libertação. Sérgio Haddad nos conta isso.

Ele não era stalinista, nem maoísta, nem castrista. Nada disso era presente na gênese de sua concepção e de sua experiência educativa. Ele era Paulo Freire mesmo. E, ao que consta, nenhum dos 300 de Angicos se tornou líder de qualquer organização de esquerda. O que ocorreu em apenas 40 horas, pura e simplesmente, é que as pessoas de fato aprenderam a ler. Ir além disso não é mais teoria da educação, mas só teoria da conspiração mesmo.

QUEM QUER SER UM ENERGÚMENO?

O educador, no exílio, percorreria vários países, até retornar ao Brasil em 1979, célebre lá fora e anistiado aqui dentro, durante o governo do general João Figueiredo, o último presidente da ditadura.

Diga-se de passagem, Figueiredo era fã declarado do músico argentino Astor Piazzolla, outro que tinha fama de comunista – ou talvez o comunista fosse só o bandoneon marxista cultural de Piazzolla? Mas Figueiredo (que ganhou fama de energúmeno desde que disse que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro do povo), se estivesse vivo hoje, dada essa preferência musical, correria o risco de receber um combo acusatório: comunista, abortista e satanista. Na Terra plana, uma coisa leva à outra.

Verdades sobre Paulo Freire? Só lendo o livro do Sérgio Haddad – eu disse “Sérgio”, tá? Embora o Fernando também tenha livros que valem muito a pena. Mentiras sobre Paulo Freire? Procure um energúmeno mais próximo de você e divirta-se.

Antonio Lassance é doutor em ciência política

Redação

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