Última peça escrita por Sartre, Os Sequestrados de Altona foi produzida pela primeira vez em 1959. Existem várias edições dela em português. A que me chegou às mãos foi impressa em Lisboa sob encomenda da Publicações Europa-América no ano de 1963. Um resumo da peça pode ser encontrado em inglês
O que me chamou especial atenção nessa peça foi uma fala do personagem O PAI durante a conversa que ele tem com Frantz no último ato.
“O PAI – Meu pobre pequeno! Queria que dirigisses a empresa depois de mi. E é ela quem dirige. A empresa escolhe seus homens… e a mim eliminou-me. Possuo-a, sim, mas já não mando. A ti então, principezinho, recusou-te desde o primeiro instante. Que precisão tem ela de um príncipe? A empresa forma e recruta sozinha os seus gerentes. (Frantz desce os degraus lentamente, enquanto o pai vai falando.) Eu tinha-te dado todos os méritos e o meu gosto acerto pelo poder… nada disso serviu. Que pena! Para agir, tomavas os maiores riscos, e a empresa transformava em gestos todos os teus actos. O teu tormento acabou por te empurrar para o crime, e até no crime ela te anula: engorda com o teu fracasso. Nunca gostei de remorsos, Frantz: são sentimentos sem serventia. Se pudesse pensar que fosses eficaz noutro sítio e doutro modo… Mas fiz-te monarca; hoje esta palavra significa: sem préstimo para nada.” (Os Sequestrados de Altona, Jean-Paul Sartre, Publicações Europa-América, Lisboa, 1963, p. 173)
Essa fala, que pode funcionar como uma síntese filosófica da obra, explicita a contradição que existe entre desejo, ato e resultado (O PAI), assim como aquela que há entre a liberdade de agir, o mau uso que se faz dela e o lucro que uma empresa acumula sem fazer distinção entre crime e atividade lícita (Frantz). Entre os dois personagens existe um terceiro: a empresa. Ela tem vontade própria.
A substituição da política (poder) pela economia (acumulação capitalista) é reconhecida no momento em que O PAI afirma que o vocábulo “monarca” sofreu uma ressignificação. Monarca significa “sem préstimo para nada” e não “aquele que detém um poder político ilimitado outorgado por Deus”. Aliado ao sucesso da empresa a despeito de quem a comandava, o deslocamento semântico explica porque o fracasso de Frantz é irrelevante. Ele não conseguiu nem mesmo ser um criminoso, pois a empresa anulou seu crime transformando-o em lucro.
Esse diálogo sugere que, apenas no final da peça, Sartre colocou em cena seu principal personagem. A empresa é uma divindade elusiva. Além do bem e do mal ela explora cada um segundo suas próprias necessidades. Como domina o espaço público e o privado, a empresa se o “locus invisível do poder” (E é ela quem dirige.). A vontade própria desse personagem impessoal comanda a trama e interfere na comunicação para ressignificar conceitos outrora bem estabelecidos.
Ecos desse debate podem ser vistos na política palaciana brasileira pós 2016. O neoliberalismo não precisava da democracia: Dilma Rousseff deposta. O neoliberalismo não precisava da Constituição de 1988: ela foi rasgada aos poucos pelos juízes encarregados de aplicá-la. O neoliberalismo não precisava dos brasileiros elevados à condição de consumidores por Lula: eles foram brutalmente descartados na miséria e perderam seus direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. O neoliberalismo considerava Lula um inimigo irredutível: ele foi condenado sem ter cometido qualquer crime através de um processo criminal notoriamente fraudulento em que todas as autoridades judiciárias, inclusive e principalmente os desembargadores do TRF-4 e os ministros do STJ, participaram alegremente da fraude.
O Estado novo neoliberal pós 2016 não precisa de Jair Bolsonaro: justamente por isso ele pode ocupar a presidência enquanto for útil. No momento em que acreditar que é um “monarca”, a empresa neoliberal vai descartá-lo porque “é ela quem dirige” tudo e todos. As pessoas estão sendo envenenadas com agrotóxicos? Nenhum problema. Isso garante os lucros dos fabricantes de pesticidas. Os índios estão sendo agredidos e mortos. Nenhum problema. As terras deles podem ser economicamente exploradas pela empresa neoliberal. A letalidade policial aumentou? Excelente. Os fabricantes de caixões e as funerárias registrarão um aumento significativo dos lucros.
Na peça de Sartre a empresa captura os personagens e os utiliza segundo seus próprios desígnios. No nosso caso, todas as instituições brasileiras foram capturadas pela empresa neoliberal transnacional. No Brasil não resta mais qualquer espaço público para a política. A distribuição de justiça se tornou uma impossibilidade concreta e até mesmo o poder não pode mais ser exercido de maneira absoluta por alguém desprezível como Bolsonaro.
Hannah Arendt rejeitou um governo mundial porque, segundo ela, a despersonalização do poder criaria um problema imenso para os governados.
“O fato de nenhum indivíduo – nenhum déspota, per se – poder ser identificado nesse governo mundial não mudaria de forma alguma o seu caráter despótico. O governo burocrático, o governo anônimo do burocrata, não é menos despótico porque ‘ninguém’ o exerce. Ao contrário, é ainda mais assustador porque não se pode dirigir a palavra a esse ‘ninguém’ nem reivindicar o que quer que seja.” (A promessa da política, Difel, Rio de Janeiro, 2008, p. 149)
O fragmento da peça de Jean-Paul Sartre sugere que O PAI, Frantz e os outros personagens são comandados pela energia da empresa. Ela não é alguém, mas pode se servir de todos justamente porque é ninguém. Sua força existe na sua natureza elusiva. O neoliberalismo também é uma divindade impessoal: a energia criminosa dela já comanda nosso país.
Todas as revoltas, rebeliões e revoluções foram contra algo ou contra alguém. Nossa revolta, rebelião e revolução será contra ninguém. Mas esse “ninguém” é diferente daquele que foi objeto das cogitações de Hannah Arendt, pois o neoliberalismo não precisa de qualquer burocracia estatal. De fato, quanto mais a destruir maior será o poder que ele conseguirá exercer sobre todos, em todos os espaços o tempo todo.
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