Pandemia, solidariedade e vacinas: disputa predatória no mundo. E o Brasil? – por Jorge Bermudez

do CEE Fiocruz

Pandemia, solidariedade e vacinas: disputa predatória no mundo. E o Brasil? – por Jorge Bermudez

Desde o início da pandemia, alertamos sobre as possibilidades de desabastecimento em nível mundial pela dependência e hegemonia na produção de determinadas matérias-primas na China e na Índia (ver aqui) e sobre a necessidade de planejar ações nas nossas cadeias de suprimento para assegurar o acesso da população aos insumos de saúde. Ao mesmo tempo, retomamos a discussão que polariza saúde X comércio e a importância da soberania no fortalecimento de nosso complexo econômico e industrial da saúde.

O mundo começou a discutir a estruturação de uma série de ações de solidariedade global, presentes nas discussões das Nações Unidas, da reunião  de ministros da Saúde do G-20 e da Organização Mundial da Saúde. Sob a liderança inicial do presidente da Costa Rica e do diretor-geral da OMS, foi lançada a proposta de que todas as vacinas, testes, diagnósticos, tratamentos na resposta à pandemia deveriam estar disponíveis universalmente como bens públicos globais (ver aqui). Na abertura da Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2020, o presidente da China afirmou que as vacinas desenvolvidas em seu país seriam colocadas disponíveis universalmente para a população mundial, sem proteção patentária.

Houve apoio de muitos países às diversas iniciativas de solidariedade, entre as quais destacamos o ACT Accelerator (Access to Covid-19 Tools Accelerator), o C-TAP (Covid-19 Technology Access Pool) e a Covax Facility, uma aliança para acelerar o desenvolvimento e a produção de vacinas para assegurar o acesso aos países. Entretanto, o que observamos no mundo, em especial na atualidade, com vacinas em desenvolvimento e autorização em caráter emergencial, é uma disputa desenfreada de mercado, com países ricos comprando das empresas produtoras muito mais que suas necessidades reais, excluindo, portanto, o acesso de países pobres a esses produtos. Países como Austrália, Canadá, Japão, Reino Unido, EUA e a União Europeia, responsáveis por 14% da população mundial, adquiriram antecipadamente a metade da produção mundial para 2021, empurrando países pobres a apenas terem a possibilidade de acesso a vacinas em 2022, 2023 ou até 2024 (ver aqui e aqui.)

O que observamos no mundo, com vacinas em desenvolvimento e autorização em caráter emergencial, é uma disputa desenfreada de mercado, com países ricos comprando das empresas produtoras muito mais que suas necessidades reais, excluindo portanto o acesso de países pobres a esses produtos

Os países travam uma disputa ferrenha por dispor de vacinas para suas respectivas populações.Os EUA montaram praticamente uma operação de guerra e investiram volumes elevadíssimos de recursos para financiar P&D, produção, infraestrutura, distribuição etc., para vacinar sua população, numa demonstração nítida de nacionalismo exacerbado e articulação unilateral. A resposta dos EUA retomou aspectos históricos da supremacia norte-americana, influenciando outros países e prejudicando a cooperação e solidariedade global.

A Europa se encontra em pé de guerra pelos atrasos no fornecimento de vacina aos seus países, com a AstraZeneca informando da redução das entregas no primeiro trimestre de 2021 e com a Pfizer/BioNTech também informando da incapacidade de atenção integral a os compromissos estabelecidos. A União Europeia ameaça bloquear qualquer exportação de vacina fabricada nos seus países até o cumprimento das quantidades internas.

Dados atuais nos mostram que pelo menos 62 países iniciaram a vacinação contra a Covid-19 e quase 100 milhões de doses de mais de uma vacina já foram aplicadas no mundo (ver aqui). Passado o primeiro ano da pandemia, continuam necessárias as medidas de distanciamento social e proteção individual, mas a vacinação em massa nos permite antever que dias melhores estão por vir e que a reabertura segura da economia poderá ser esperada no futuro próximo, sem a irresponsabilidade que vivenciamos hoje, com praias e bares lotados, sem uso de máscaras, com aglomerações que propiciam uma maior propagação da doença.

No Brasil, a vacinação começou e consideramos necessário deixar claro que está sendo possível graças aos esforços de nossas instituições públicas e seus servidores – esses que o ministro Guedes chama de “parasitas”. O negacionismo do governo federal foi vencido pelo compromisso e demonstrações públicas de evidências científicas acolhidas pela Comissão externa de combate ao coronavírus da Câmara dos Deputados, por nossas instâncias científicas e pelo clamor popular. O acordo do Instituto Butantan com a SinoVac, importando as primeiras doses da CoronaVac, o acordo da Fundação Oswaldo Cruz com a AstraZeneca, também importando uma quantidade inicial de vacinas, permitiram uma distribuição por todo o país, tornando possível o início da vacinação em escala nacional.

Nosso conhecimento acumulado e capacidade de inovação são admiráveis, em que pese o estrangulamento de recursos e o descaso da necessidade de investimento pelas autoridades

Tanto o Instituto Butantan como a Fiocruz vão receber IFA (insumo farmacêutico ativo) para completar as etapas de produção e os acordos preveem a transferência completa da tecnologia e a produção em escala no Brasil, com a perspectiva de se fazer frente à totalidade da demanda nacional. A competência demonstrada pelos técnicos da Anvisa na análise e avaliação das solicitações de autorização emergencial, mais a experiência acumulada do Programa Nacional de Imunizações desde 1973, todos eles servidores públicos, superaram os entraves e as dificuldades que o governo federal vinha apontando, chegando esse governo ao extremo de fazer apologia de medicamentos milagrosos e distribuição do inútil, inoportuno e nocivo kit Covid e que atrasou o início da vacinação, na contramão do que o Brasil representava no passado recente para o mundo. Esse conjunto de estruturas e servidores capacitados e que nos trazem a este novo momento são o nosso SUS!

Esperamos, ainda, que outras vacinas estejam disponíveis no Brasil, com as tratativas do TecPar (Instituto de Tecnologia do Paraná) e também da União Química com o Instituto Gamaleya da Rússia. Outras iniciativas serão relevantes, incluindo a adesão tardia do governo à iniciativa Covax, a potencial aquisição de outros produtores internacionais e também o desenvolvimento de tecnologias por instituições nacionais de pesquisa e desenvolvimento. Nosso conhecimento acumulado e capacidade de inovação são admiráveis, em que pese o estrangulamento de recursos e o descaso da necessidade de investimento pelas autoridades.

A resposta brasileira ao HIV/Aids, o acesso universal a ARVs [antirretrovirais], a produção local, a engenharia reversa e o desenvolvimento de medicamentos genéricos, a emissão da licença compulsória para o Efavirenz em 2007, o fortalecimento do complexo econômico e industrial da saúde e as PDPs, tudo isso faz parte do passado, desse passado no qual o Brasil era respeitado e admirado e não ridicularizado como vemos no momento atual.

Encontra-se em discussão na Organização Mundial do Comércio, desde o início de outubro de 2020, uma proposta submetida pela Índia e África do Sul, com apoio de Quênia e Eswatini, de suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual (patentes) das tecnologias associadas ao enfrentamento da pandemia, de nominada de waiver. Embora apoiada hoje por cerca de cem países (incluindo a União Africana em peso) e a sociedade civil em peso, o Brasil se afastou de seus parceiros tradicionais e preferiu se alinhar com EUA, União Europeia, Reino Unido, Canadá, Austrália, Suíça, Noruega e Japão, em oposição a essa medida.

Entretanto, o Brasil é maior do que seus governantes de plantão. Nossas instituições públicas, nossa diplomacia histórica, nossa gente e nossa garra haverão de superar estes momentos de negação e genocídio, legando para nossas futuras gerações um Brasil orgulhoso e respeitado, o Brasil que nós conhecemos, defendemos e respeitamos!

Jorge BermudezPesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), membro do Painel de Alto NÍvel em Acesso a Medicamentos do Secretário-geral das Nações Unidas.

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