Porque a campanha de abstinência tem tudo para ser popular – e não deveria ser piada

Por Lucas Bulgarelli

A campanha de abstinência proposta por Damares Alves dialoga diretamente com uma das maiores preocupações de pais e mães brasileiros que não leem Intercept e não conhecem Stalin: a sexualização dos filhos na infância.

É um debate cheio de arestas, visto em larga escala como um problema nos serviços de atendimento como saúde, educação e assistência social, ao mesmo tempo em que coloca em xeque a efetividade das escolhas de pais muitas vezes pouco informados sobre sexo e sexualidade.

Falar sobre educação sexual passa por questionar uma autoridade parental que combina violência e cuidado, vigilância e provimento, responsabilidade legal e reputação.

O fenômeno da gravidez precoce, apesar de utilizado no singular entre especialistas, é bastante variável de contexto a contexto. A falta de informação para basear escolhas é um ponto importante, mas não o único, e mesmo ele deve ser questionado.

As campanhas de prevenção da gravidez precoce existem, mas em geral chegam ao jovem como um assunto totalmente fora da sua realidade, quando não o transforma ainda em mais tabu.

Às vezes não se trata de passar a informação, mas como passar, com qual intuito para cada público. Falar com pais, adolescentes e profissionais de saúde são coisas diferentes. Uma campanha de redução da gravidez precoce muda a depender do estado ou do tamanho do município.

Mas também há a gravidez na adolescência que é planejada, pensada como um plano de vida que de certo modo emancipa jovens acostumados a serem tratados como incapazes e garante a eles alguma respeitabilidade.

Além de todas as situações de violência sexual, frequentemente dentro de casa, em ocorrências que vão de abusos a ciclos de estupro.

Durante o trabalho de campo, ouvi dois relatos sobre os ciclos, quando o pai ou padrasto estupra a filha, a engravida e passa a estuprar a criança nascida da relação. Em geral o bairro todo sabe e o silêncio é difícil de ser rompido.

E também há o julgamento do entorno, dos vizinhos, dos familiares. A mesma noção de família tradicional responsável por excluir pessoas LGBTs de casa também julga e condena mães que não desempenham uma maternidade considerada ideal.

Conversando em campo com diretores/as e pedagogos/as sobre gravidez precoce, a palavra que eu mais anotei no caderno foi “família desestruturada”. Pois quando a família é estruturada, não acontece nem gravidez, nem homossexualismo (sic).

A ideologia de gênero tem sido uma das ferramentas mais bem sucedidas da direita no Brasil. Ao disputar o sexo e o gênero no campo da política, oferece uma compreensão de mundo bastante útil para quem questiona se está sendo um bom pai ou mãe.

Porque localiza as dificuldades sobre o sexo e a sexualidade como um elemento externo ao núcleo familiar e contrário a seus valores. Um mal, portanto, que vem de fora para dentro por contaminação, podendo, por consequência, ser combatido.

A campanha de abstinência para jovens e adolescentes, pautada não em conhecimento científico, mas em crença e em fé, é um desenvolvimento da política de gênero deste governo e tem tudo para ser popular.

Mas, é claro, resolvemos tratar o assunto na piada.

Lucas Bulgarelli pesquisa gênero, sexualidade e conservadorismo no Brasil. Mestre e doutorando em Antropologia pela USP.

Redação

Redação

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  • É sintomático: pessoas de mentes quadradas e/ou corpos roliços acreditam que os astros são planos.

    A Damares e todos aqueles que compõem o governo tem no mínimo a mente quadrada.

    • disse tudo...
      cuidar da unidade familiar que é bom, nada....................falta saúde, falta educação, falta emprego, falta dinheiro, e agora eles querem que falte sexo

      unidade familiar quase que completamente desmantelada e o governo nem aí para a obrigação de tentar reverter a situação ou cuidar de toda a família e não apenas de indivíduos

      e olha que os pobres já estão colaborando bastante, deixando o matrimônio e a maternidade para dias melhores

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