Saneamento: Tanto faz se é privada ou estatal?, por Elias Haddad Filho

Saneamento: Tanto faz se é privada ou estatal?

por Elias Haddad Filho

Do ponto de vista daqueles que não recebem água potável em suas casas a discussão de que os serviços de abastecimento de água (e os demais serviços de saneamento) sejam administrados por uma entidade pública ou privada é absolutamente irrelevante. Os Sem-água no Brasil são em torno de 32 milhões de pessoas abandonadas por nós.

Com grande espaço e apoio escancarado na imprensa de modo geral, nos últimos dias foi possível observar as discussões sobre um pretenso ‘novo’ marco regulatório para o saneamento. Digo pretenso, pois nada de relevantemente novo é encontrado no PL 4162/19, em mãos da presidência da república para sanção. A redução da autonomia municipal, com a impossibilidade de se firmar novos contratos de programa com sociedade de economia mista e empresas públicas (instrumento que, junto com os convênios de cooperação, regula a prestação de serviços entre entes federativos – união, estado e município) e a introdução de regulação normativa em nível central (a Agência Nacional das Águas – ANA) foram as novidades principais mais relevantes.

Desta maneira, o que se observa é uma forçação de barra para a maior penetração da iniciativa privada neste mercado. O marco do saneamento nada mais é do que uma atualização da lei 11.445 de 2007 conseguida por articulação dos representantes do grande capital, sem locais rentáveis onde se estabelecer, a representante das grandes operadoras privadas de saneamento e os nossos ‘nobres’ parlamentares representantes dos mais diversos interesses de caráter pretensamente liberal ou mesmo paroquial. Ao público em geral ficou “determinado/estabelecido” (a mídia nacional jogou um papel fundamental no “convencimento” de uma parte dos parlamentares e parcela da população sobre esta escolha de modelo) que a situação sanitária do país é este caos que conhecemos exclusivamente devido à incompetência das empresas estatais de saneamento e demais autarquias municipais. A solução para o problema seria forçar a penetração ainda maior da inciativa privada no setor, mesmo porque nada a impedia na legislação existente. Assim, como em um passe de mágica todos os problemas serão resolvidos, repetem nossos ‘valorosos’ parlamentares e a grande imprensa nacional. Com a entrada das empresas privadas ainda mais fortemente no setor, a pretendida universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário ocorrerá no país até 2033 (quanta ingenuidade). Tais empresas trarão avalanches de recursos para investimentos, como nunca antes se viu.

Ledo engano. O capital privado, que de privado tem pouco ou quase nada, uma vez que advindo de captação de recursos públicos junto ao BNDES ou à Caixa, FAT e FGTS em sua maior parte, é bom frisar, não vai aplicar recursos onde não tenha rentabilidade expressiva. Ao contrário do que se pretende, a universalização, o interesse das empresas privadas é justamente onde a questão sanitária já está solucionada ou em vias de se equacionar. São as médias e grandes cidades, regiões metropolitanas, onde a rentabilidade da operação é garantida com os níveis atuais de tarifa e baixos investimentos. Por outro lado, caso tenham que realizar grandes investimentos em sistemas de menor rentabilidade ou até deficitários, é de se esperar grande elevação nos níveis tarifários hoje praticados ou o não atingimento das metas pactuadas e a devolução de parcelas das concessões ao estado (isto aconteceu na privatização da Saneatins – empresa de saneamento do estado de Tocantins).

Enquanto o mundo resolve dar “uma marcha a ré para trás” nas privatizações ocorridas nas décadas de 80 e 90, aqui caminha-se na contramão. Os mais recentes estudos realizados têm mostrado que a privatização dos serviços de água e esgoto pelo mundo começam a refluir com uma poderosa onda de reestatização: Berlim, Paris, Buenos Aires e uma infinidade de outras cidades na Europa, Ásia, África e mesmo nas Américas e no Brasil. Contabilizaram-se mais de 300 casos de reestatização de serviços que haviam sido privatizados nos últimos tempos.

Afinal de contas, onde falta água no Brasil? Nas zonas rurais, periferias das grandes cidades e pequenas localidades espalhadas por todo o território nacional. Não tem água uma multidão de ‘Sem voz’. Para os brasileiros moradores daquelas localidades, os invisíveis Sem-água, não interessa se a gestão dos serviços é privada ou pública. Interessa ter um serviço decente ao qual eles sejam capazes de pagar.

A posição do legislativo brasileiro tem mostrado o quanto nossos parlamentares desconhecem a realidade de nossas populações mais vulneráveis e esquecidas e, principalmente, as causas de chegarmos onde estamos. 

O caso de Minas Gerais

Em 2019 éramos 1,73 milhão de mineiros sem água tratada em rede geral de distribuição de água à sua disposição. Em 2016 éramos 1,68 milhão. Neste período a companhia de saneamento do estado investiu mais de 500 milhões de reais (meio bilhão) ao ano em média, sendo 240 milhões apenas em sistemas de abastecimento de água. Como é possível investimentos desta monta e ainda assim a população sem água crescer?

A resposta é simples: o governo estadual desde sempre manteve como instrumento único de sua política de saneamento as ações de sua empresa estatal, relegando a segundo plano todos os municípios que não haviam aderido à companhia estadual, e mesmo a população periférica, de vilas ou povoados e rural nos municípios onde atua. Esta Companhia, até por seu DNA oriundo do autoritarismo reinante durante a década de 70 (época de sua criação), atendeu quase que exclusivamente às populações urbanas, deixando de avançar no atendimento aos aglomerados e localidades rurais. Em 2006 o governo do estado cometeu o suicídio de colocar as ações de sua companhia estadual na bolsa de valores: fim de qualquer perspectiva de investimento social e fim da busca pela universalização. Desde então, o controle da companhia, que é do estado de Minas Gerais, passou a ser, de fato, do invisível acionista minoritário que “impedia”, e ainda impede, quase qualquer investimento da empresa em municípios menores e com baixa rentabilidade ou deficitário. Não que o minoritário sempre dissesse não a propostas de pleitos de caráter social, pelo contrário, muitas das vezes a direção da Companhia (ali colocada pelo executivo estadual) usava o discurso de uma pretensa exigência de lucratividade no limite pelo acionista minoritário para impedir a discussão de propostas que pudessem trazer avanços na universalização, ou avançar em áreas de populações mais vulneráveis com baixa rentabilidade.

Ao abrir mão de ter sob seu controle a política de saneamento do estado, ou melhor dizendo, ao transformar a política de saneamento do estado em uma obsessão pela maximização do lucro estatal, os governos estaduais vêm penalizando de maneira cruel as populações mais desfavorecidas e vulneráveis do estado.

A pretendida privatização da Companhia estadual de saneamento ou a introdução de qualquer modelo de prestação de serviço que não leve em conta e priorize o resgate da dívida de incontáveis administrações estaduais para com a população desvalida do estado é um ato injusto e cruel da atual administração estadual em Minas.

As soluções existem e não passam pela privatização da empresa estadual. Arranjos e modelos mais adequados podem e devem ser desenhados para que se atinja o objetivo número 1: a universalização do saneamento e o atendimento com serviços de qualidade às populações mais sofridas de Minas. Um bom início seria o encaminhamento, pelo executivo estadual, de projetos de lei que impliquem na implantação medidas que garantam o controle social naquela empresa e radicalizem a eficiência na gestão da companhia estadual com o foco naquele objetivo número 1 que deve ser perseguido obcecadamente.

Assim se espera. Para os Sem água, se assim não for, tanto faz.

Redação

Redação

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