duas histórias sobre pressão exercida em dois ídolos populares, ambos na órbita do futebol, ainda que em pontos distintos.
Brasil, Maracanã, final da Copa de 1950.
o acreano Barbosa, um dos melhores goleiros da história do futebol, praticamente fechara o gol em todas as partidas do torneio, sofrendo poucos gols, nenhum por frango ou falha exclusivamente pessoal, o que se repetiu na fatídica final, com a vitória uruguaia por 2 x 1, mas, dada a circunstância, era preciso (sic) jogar a culpa em alguém, e, não importando as falhas da defesa, o único culpado foi Barbosa.
sua carreira no Vasco continuou, mas o estigma de “maldito” também, e nunca mais lhe foi reconhecido o devido valor.
em 1994, sofreu o mais vil e violento golpe: já no outubro de sua vida, imaginando que o assunto fosse página virada, quis visitar a seleção em sua concentração, mas foi barrado: elenco, comissão técnica e cbf não quiseram associar sua imagem à de Barbosa, temendo que desse “azar”.
em 2000, pouco antes de morrer (esquecido, viúvo, pobre, sobrevivendo com uma ajuda do Vasco), numa entrevista, sem qualquer traço de raiva, com a dignidade possível na resignação, declarou: “A pena máxima prevista no Código Penal é de 30 anos. A minha já dura mais de 40, lido com isso como posso: vivendo”.
Brasil, 1962, pouco antes da Copa no Chile.
Garrincha conhece Elza Soares, e quem testemunhou os olhares que trocaram no momento imaginou que aquilo daria barulho, mas ninguém imaginava que o mesmo seria equivalente ao provocado por terremotos.
ambos eram casados, desquite, à época, era um misto de pecado mortal com crime – no caso, por envolver um ídolo brasileiro, crime de lesa-pátria -, mas deu-se o óbvio esperado das paixões inflamáveis e dos amores implacáveis: separaram-se de seus cônjuges, mandaram o moralismo ao beleléu e juntaram as escovas de dentes, dando início ao fim de seu sossego, especialmente o de Elza.
Elza sofria apedrejamentos verbais diários, além de algumas ameaças físicas, não raro comunicadas da forma mais covarde e cruel: as pessoas matavam os bichos de estimação do casal…
graças ao sensacionalismo midiático, os bafafás tomaram proporção nacional, o que, depois de anos de demonização, mais o galope do alcoolismo, abalou a carreira de Garrincha, mas, claro, a culpada só poderia ser Elza, destruidora de lares e de craques, que, na verdade, por amor, lealdade e dedicação incondicionais ao craque, destruíra apenas uma vida: a sua, pessoal e profissional.
anos de ostracismo e decorrentes dificuldades, a morte de um filho, a decadência física e a morte de Garrincha, nada era capaz de livrá-la da condenação pública, nem mesmo a bonita tentativa de Caetano, valendo-se de seu prestígio, ao fazer dueto com ela em “Língua”, no formidável álbum “Velô”, apresentando-a aos mais jovens e lembrando seus algozes que sua dignidade era proporcional a seu talento.
somente após o lançamento de “Estrela Solitária”, a magistral biografia que Ruy Castro fez de Garrincha, as pessoas entenderam: sem Elza, o gênio da bola teria morrido muito antes, e de forma ainda pior.
a partir daí, e até hoje, já octogenária (faz aniversário hoje) e com muitas debilidades físicas, Elza se reinventa e se faz ainda maior, e sempre de um só modo: dando o máximo de seu talento único no ofício que escolheu e que, apesar e por causa de tanta pressão, a consagrou.
lembro que Telê Santana, nas concentrações do São Paulo e da seleção, dava livros aos jogadores e, pra garantir a leitura, tomava o “ponto”, depois.
não sei e nem creio que algum dos jogadores tenha se tornado leitor voraz, e não importa.
o fato é refletir quanto desse modus operandi também não foi determinante para atuações inesquecíveis do vencedor São Paulo e antológicas de uma seleção que não ganhou canecos, mas recuperou respeito mundial.
e nem falemos da imagem que, ideologias e vaidades à parte, seus craques eternizaram.
a biografia de Garrincha e as histórias de Barbosa e Elza deveriam ser leitura obrigatória para jogadores – e para os fãs incondicionais destes.
Zê Carota
Ganhou espaço nas redes sociais com suas intervenções. Textos curtos. Rápido no gatilho
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LUCIDEZ
Zê Carota é uma dessas inteligências que nos ajudam a pensar melhor. Obrigado, companheiro.