Sobre deveres humanos e democracia, por Emmanuel Zagury Tourinho


Não há caminhos precisos para construir um futuro, mas não haverá nenhum caminho se abdicarmos da democracia – Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Por Emmanuel Zagury Tourinho

Sobre deveres humanos e democracia

Na CartaCapital

Para as universidades públicas estão em jogo desde a liberdade de cátedra até a própria sobrevivência como instituições públicas, gratuitas e inclusivas

Em um de seus Discursos de Estocolmo, José Saramago lembra que os direitos humanos só subsistem com a simetria dos deveres humanos que lhes correspondem. Acrescenta que muitos dos graves problemas sociais que hoje estão à nossa frente, recorrentes violações dos direitos humanos, decorrem do fato de que há muitos homens e mulheres que não estão a cumprir os seus deveres.

Mostram-se especialmente preparados para reivindicar direitos pessoais, mas não admitem reconhecer e se ocupar de deveres para com os outros. Nestes dias que antecedem o segundo turno das eleições presidenciais, quantos negligenciam os seus deveres ao tratar como um fato naturalmente aceitável a submissão da nação e de toda a sociedade aos caprichos e arbítrios de um homem que exalta a ditadura e seus mais abomináveis atores, proclama a inferioridade de mulheres, LGBTs, negros e indígenas, e tem como principal plataforma a supressão de direitos e a entrega do patrimônio nacional a interesses externos?

E o que dizer de seus seguidores, que antes mesmo de qualquer voto apurado já se julgam no direito de agredir mulheres, espancar homossexuais e afrontar as instituições democráticas?

Temos inúmeros problemas a resolver com a nossa democracia, isso é indiscutível. Presidencialismo de coalizão, partidos em profusão, aparelhamento de instituições e empresas públicas, confusão entre religião e política estarão necessariamente na pauta da sociedade brasileira a partir de janeiro de 2019. Ou não.

Isso dependerá de sairmos das eleições com um presidente que tem compromisso com a democracia, ou com um presidente que se acha autorizado a impor à força as medidas que seus conselheiros entendem apropriadas, do alto da sua indisposição para debater os grandes problemas nacionais e da inequívoca vocação para cuidar de interesses alheios aos interesses da nação.

Em tão grave momento da vida nacional, a omissão não é aceitável, até mesmo porque se torna cumplicidade com a barbárie. Os deveres são inescapáveis e a responsabilidade pelo que cada um fizer será cobrada pela história.

Discordâncias programáticas, insatisfações com lideranças, nada disso justifica a posição cômoda de lavar as mãos ante o desastre civilizatório que se anuncia e que, por um longo período, comprometerá os direitos de todos. As promessas são cristalinas e ninguém poderá no futuro alegar que não sabia o que estava por acontecer.

Para as universidades públicas, base da ciência brasileira, sem o que não há soberania nacional, é preciso dizer que estão em jogo desde a liberdade de cátedra até a própria sobrevivência como instituições públicas, gratuitas e inclusivas.

Com um presidente democrata, poderemos discutir o aperfeiçoamento e a expansão da educação superior pública; com um Presidente que empunha armas para ameaçar adversários, restará pouco além de lutar para que as instituições não sejam extintas ou entregues a empresas privadas controladas por fundos financeiros internacionais.

É também de José Saramago, no Ensaio sobre o Cegueira, a referência metafórica ao que olhamos e não vemos. Não vemos por falta de preparo, de vontade ou de compromisso. Há, hoje, muitos que deliberadamente não veem, ou mais propriamente fingem não ver. Fingem não ver para não assumir seus deveres. Enquanto bradam por direitos próprios, negam os direitos de outros. Enquanto professam o amor à pátria, negociam a sua falência.

Ainda há tempo para mudar esse cenário. Temos uma nação culturalmente rica e com enorme vocação para a solidariedade e a felicidade, não para a intolerância e a violência. Uma nação que tem como maior desafio superar a desigualdade e a exclusão que se reproduzem estruturalmente desde a escravidão e que a envergonham perante o mundo inteiro, contra as quais apenas ensaiamos os primeiros passos.

Não há caminhos precisos para construir um futuro que nos realize e nos orgulhe como sociedade, mas simplesmente não haverá nenhum caminho se abdicarmos neste momento da democracia. Garanti-la hoje é um dever de qualquer um que aspire a direitos de cidadania.

*É ex-presidente da Andifes e reitor da UFPA

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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