Tempos sombrios, literalmente, por Ergon Cugler

Tempos sombrios, literalmente, por Ergon Cugler

Apesar da palavra “ingerência” estar em destaque dentre as que mais usei para textos relacionados ao Governo Bolsonaro, “tempos sombrios” tem seu lugar em algumas publicações. Admito, porém, que nunca imaginei usar tal expressão de forma literal.

Inicialmente, é sua alusão à ditadura militar, banhado a um mantra saudosista, que remete à obscuridade de um período repleto de sangue nas lacunas históricas do DOI-CODI. Obscuro, acima de tudo, pelas centenas de corpos ainda desaparecidos, pelas milhares de vítimas desconhecidas e pelos milhões de brasileiros que viveram sob o medo da repressão institucionalizada.

Ao longo das eleições, a banalização da realidade promovida pela disseminação de notícias falsas, em larga escala, contribuiu para a onda obscurantista aparelhada pela postura do capitão. Uma vez eleito e empossado, diversos analistas políticos apostavam na amenização de seu discurso, sendo diariamente contrariados a cada polêmica do presidente em suas declarações nebulosas.

Não que se esperasse que o saudosismo autoritário de Bolsonaro desaparecesse com sua posse, mas porque havia certa esperança de que sua inabilidade no executivo iria representar falência de reputação, mesmo que lenta, promovendo o contínuo enfraquecimento de seus desastrosos devaneios sobre o Brasil. Na contramão, a névoa da desinformação se transforma aos poucos em estratégia de ganho político e se banaliza através do poder institucional.

Era das Sombras

Sábado – 10 de agosto de 2019 – fazendeiros promovem o chamado Dia do Fogo na Amazônia e, estimulados pelo discurso do presidente da República, transformam a névoa retórica em cinzas da maior floresta tropical do mundo. Com 124 focos de incêndio em apenas um dia e na reivindicação de utilizar as áreas para o pasto, não há planejamento para reuso do terreno agora infértil, mas há fúria no imaginário daqueles que compram a nebulosa ira do presidente.

Mais de uma semana após o início do incêndio (segunda-feira, 19), tamanha era a tragédia que escureceu durante o dia. Enquanto muitos tiravam fotos e gravavam o tom acinzentado que tomava conta do Sudeste, o fogo se alastrava na floresta de mais de 5 milhões e meio de quilômetros quadrados. Fogo este que já se confundia com a rotina dos rondonienses, chegando ao Sudeste semanas após a divulgação do Inpe sobre o crescimento de 278% do desmatamento.

Com tanta tragédia e um presidente obscurantista, a penalidade não cai a quem pratica o desmatamento, mas a quem o traz à luz. Do Inpe, à censura da Ancine; do desmembramento do Ibama aos cortes no Censo 2020; do brutal assassinato de Marielle Franco ao arbitrário encarceramento de Rafael Braga, a realidade se dissolve enquanto a desinformação se transforma em ideologia e, na nova era, em política de Estado.

Ocorre que dentre todas apostas de Bolsonaro, o desprezo à honestidade e à realidade é a tática mais eficaz de confusão mental. Por um lado, conflitos com a Alemanha e críticas à Noruega, por outro, Bolsonaro se lança ao embate internacional para forjar postura de compromisso programático com países como os EUA e o Estado de Israel. Enquanto se esquiva da responsabilidade, utilizando de declarações polêmicas, suas práticas soam muito menos desorientadas do que suas supostas alegações espontâneas.

Com holofotes em suas ações inesperadas, é na sombra que reside a consciência de Bolsonaro, alinhada com os mais preparados quadros do neoliberalismo internacional e conduzindo, deliberadamente, um projeto reacionário de desmonte da soberania conquistada pelo povo brasileiro ao longo dos séculos.

Futuro?

Foram os relatórios da ONU que alertaram: sem mudarmos nossas práticas ambientais e os mecanismos de produção, até 2050 não será possível alimentar toda população do mundo. Fica a angústia, até mesmo uma sensação de impotência, pois longe de práticas individuais e isoladas configurarem uma mudança sistêmica que revertam as ações de um presidente. Ocorre que subestimamos, enquanto campo democrático, a habilidade de se agravar ainda mais o cenário através do domínio das instituições.

Diariamente ouve-se que quem expõe o atual governo está torcendo contra o Brasil, como se fosse possível torcer a favor de um Brasil fruto de devaneios de um presidente desastroso e, pior, compactuar com a destruição declarada do Brasil. Há de se expor Bolsonaro, recordar diariamente que por detrás de uma figura caricata que se auto-promove enquanto não-ideológico, há um projeto consciente em execução que ultrapassa o próprio presidente, mas representa os interesses do imperialismo.

São tempos sombrios, literalmente, pois enquanto há uma floresta queimando no céu, caem cinzas sobre os lares de milhões de brasileiros na margem da miséria e sem perspectiva de emprego. O devaneio obscurantista do presidente revela-se um desastre muito mais potente do que qualquer um pôde prever, custando não apenas nosso futuro, mas anoitecendo nossos dias ainda no presente.

* Ergon Cugler é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP)

Redação

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