Categories: Brasil

Proposta concreta, por Vladimir Safatle

Da Folha

Proposta concreta

VLADIMIR SAFATLE

Há várias maneiras de esconder uma grande manifestação. Você pode fazer como a Rede Globo e esconder uma passeata a favor das Diretas-Já, afirmando que a população nas ruas está lá para, na verdade, comemorar o aniversário da cidade de São Paulo.

Mas você pode transformar manifestações em uma sucessão de belas fotos de jovens que querem simplesmente o “direito de se manifestar”. Dessa forma, o caráter concreto e preciso de suas demandas será paulatinamente calado.

O que impressiona nas manifestações contra o aumento do preço das passagens de ônibus e contra a imposição de uma lógica que transforma um transporte público de péssima qualidade em terceiro gasto das famílias é sua precisão.

Como as cidades brasileiras transformaram-se em catástrofes urbanas, moldadas pela especulação imobiliária e pelas máfias de transportes, nada mais justo do que problematizar a ausência de uma política pública eficiente.

Mas, em uma cidade onde o metrô é alvo de acusações de corrupção que pararam até em tribunais suíços e onde a passagem de ônibus é uma das mais caras do mundo, manifestantes eram, até a semana passada, tratados ou como jovens com ideias delirantes ou como simples vândalos que mereciam uma Polícia Militar que age como manada enfu-recida de porcos.

Vários deleitaram-se em ridicularizar a proposta de tarifa zero. No entanto, a ideia original não nasceu da cabeça de “grupelhos protorrevolucionários”. Ela foi resultado de grupos de trabalho da própria Prefeitura de São Paulo, quando comandada pelo mesmo partido que agora está no poder.

Em uma ironia maior da história, o PT ouve das ruas a radicalidade de propostas que ele construiu, mas que não tem mais coragem de assumir.

A proposta original previa financiar subsídios ao transporte por meio do aumento progressivo do IPTU. Ela poderia ainda apelar a um imposto sobre o segundo carro das famílias, estimulando as classes média e alta a entrar no ônibus e a descongestionar as ruas.

Apenas nos EUA, ao menos 35 cidades, todas com mais de 200 mil habitantes, adotaram o transporte totalmente subsidiado. Da mesma forma, Hasselt, na Bélgica, e Tallinn, na Estônia. Mas, em vez de discussão concreta sobre o tema, a população de São Paulo só ouviu, até agora, ironias contra os manifestantes.

Ao menos, parece que ninguém defende mais uma concepção bisonha de democracia, que valia na semana passada e compreendia manifestações públicas como atentados contra o “direito de ir e vir”. Segundo essa concepção, manifestações só no pico do Jaraguá. Contra ela, lembremos: democracia é barulho.

Quem gosta de silêncio prefere ditaduras.

Luis Nassif

Luis Nassif

Recent Posts

Mudanças climáticas pioram enchentes urbanas e despertam interesse pelo conceito de “cidades-esponja”

Nas cidades-esponja, toda superfície precisa estar conectada a um espaço que possa inundar com segurança

38 minutos ago

Acampamento estudantil pressiona USP a romper convênios com Israel

Estudantes protocolaram pedido de cancelamento dos vínculos com universidades israelenses consideradas cúmplices do genocídio em…

1 hora ago

Em 24 horas, Brasil registra mais de 34 mil casos prováveis de dengue

Desde janeiro, 2.409 pessoas morreram de dengue no país. Nove Estados e o Distrito Federal…

1 hora ago

Com previsão de temporais, Inmet emite alerta de “perigo” para cidades do Rio Grande do Sul

A situação da capital Porto Alegre preocupa devido aos níveis já elevados do rio Guaíba.…

2 horas ago

Consumo excessivo de ultraprocessados resulta em 57 mil mortes prematuras por ano

Obesidade por má alimentação custa R$ 1,5 bi por ano ao SUS. Se nada mudar,…

3 horas ago

Brasil, um deserto intelectual?, por Arthur Grohs

Agora que o Brasil começa a caminhar com suas próprias pernas novamente, é o instante…

4 horas ago