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Memória demolida

O governo do Estado do Rio de Janeiro se mantém firme na decisão de demolir a Escola Municipal Arthur Friedenreich, com quase meio século de existência e uma das melhores instituições públicas de ensino da cidade, ao lado do estádio do Maracanã. A escola será destruída para a construção de quadras de aquecimento a serem utilizadas pelos jogadores que disputarão partidas no estádio reformado. Os poderosos donos da bola argumentam que a escola não sofrerá o impacto, já que será transferida para um prédio novinho em folha, no bairro de São Cristovão.
Os engravatados tecnocratas do governo ignoram que um lugar não é composto apenas da matéria bruta de seus alicerces. A Escola Friedenreich, mais do que um prédio, é depositária das memórias, aspirações, anseios, sonhos, desilusões, conquistas, fracassos, alegrias e invenções da vida de inúmeras gerações que passaram por seus bancos. Uma escola é, portanto, também o resultado das experiências intangíveis, matéria da memória acumulada pelas gerações de alunos e professores que ali experimentaram a aventura do conhecimento.
Os índios da praia sagrada de Morená, no Xingu, dizem que nos troncos de árvores moram, encantados e perpetuados, os espíritos de seus ancestrais. Quando um terreiro de candomblé é criado, planta-se no solo, em cerimônias que envolvem elementos da natureza, o axé (poder espiritual) da casa, que perpetuará naquele local o acúmulo de saberes que a ancestralidade proporciona à comunidade. Sabem, os índios e negros, que a experiência está fincada em certos locais, sacralizados pelo que foi vivido ali.
Derrubar a escola é, portanto, matar o axé, derrubar os troncos das árvores sagradas e quebrar o elo de ancestralidade que faz a vida em comunidade ser possível. Existem inúmeros alunos cujos pais estudaram na Escola Municipal Arthur Friedenreich. Imaginem o que é para uma criança, na construção de suas referências, saber que a sala em que ela aprende foi a mesma em que seus pais aprenderam um dia. A escola em São Cristovão pode manter o nome, os professores e o padrão de ensino, mas jamais será a do Maracanã, com toda a memória dos afetos acumulados ao longo das décadas.
Coisa similar está prestes a acontecer com os sobrados centenários da Rua da Carioca. Um banco de investimentos comprou os imóveis e, com a fria lógica do lucro fácil, coloca em risco toda a tradição que uma das mais tradicionais ruas da cidade tem acumulada. O axé da Rua da Carioca, com suas centenárias casas de instrumentos musicais e restaurantes, periga sucumbir aos ditames dos almofadinhas cheios de grana, que conhecem tanto da alma da velha rua quanto um esquimó entende da alma de Madureira.
A cidade do Rio de Janeiro, encarada pelos homens do poder como um balneário de grandes eventos, Disneylândia tropical do século XXI, está sendo destruída em suas referências mais profundas. A sanha modernizadora, afeita aos grandes negócios, é aquela que esmaga o intangível e o que não é mensurado pelas regras do mercado financeiro: a cultura carioca e os seus lugares de memória; elos poderosos de ligação com o passado, lições vivas da ancestralidade de um povo que, contra o efêmero de escusas transações, sacralizou em rituais de celebração da vida as praias, esquinas, botequins, sobrados e escolas deste nosso terreiro; a Guanabara.
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