Cinema

Niède, por Solange Peirão

Niède

por Solange Peirão

Niède Guidon, historiadora e arqueóloga, foi contemplada com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto de 2024. O Prêmio é uma iniciativa parceira do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); existe desde 1981, ano em que se comemoram os trinta anos da criação do CNPq.

Niède nasceu em 1933 em Jaú (SP), em uma família de ascendência francesa. Formou-se em História Natural pela USP, e especializou-se em Arqueologia pela Universidade de Paris-Sorbonne. É a desbravadora, no começo dos anos 1970, do que viria a se constituir, em 1979, no Parque Nacional da Serra da Capivara, situado à sudeste do Piauí. Tombado pelo IPHAN, foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1991. Niède dirige a Fundação Museu do Homem Americano, instituição responsável pelo manejo do Parque.

Em 2019, foi realizado o documentário Niéde, dirigido por TiagoTambelli. Assisti-lo, é conhecer o trabalho incansável dessa cientista e seus pesquisadores. É conhecer as comunidades assentadas na região, e que foram lentamente sendo educadas para respeitar esse trabalho, até serem integradas a ele. Muito mais do que uma descoberta de vestígios arqueológicos, que permitiram fazer uma revisão sobre a ocupação humana pré-histórica do Brasil e das Américas, aconteceu ali um projeto educativo exemplar.

O filme abre-se com uma bela cena de mulher que se movimenta numa quase dança. O que se mistura — fragmentos luminosos — à sua imagem indistinta, prepara nosso olhar para mergulhar nas primeiras tomadas abrangentes do Parque e, a seguir, nos belos signos focados nas pinturas rupestres.

A partir de então, todo documentário é marcado por registros de audiovisuais, feitos ao longo de todo processo de formação do Parque, intercalados com as falas de Niède e das pessoas envolvidas no trabalho, por esses quase cinquenta anos.

As publicações já disponíveis ao público nos permitem conhecer, de antemão, as características e conquistas principais desse projeto. Trata-se de uma extensa área com mais de 1.200 sítios pré-históricos, nos quais as pinturas rupestres datam entre 4 mil e 50 mil anos, com cenas rituais do cotidiano que evocam a caça, a dança, o sexo, o parto. Desses sítios, destaca-se o da Toca do Boqueirão da Pedra Furada, por sua beleza e importância dos vestígios arqueológicos (além das pinturas, esqueletos humanos, instrumentos líticos e peças cerâmicas) que vem fornecendo.

O Museu da Natureza, inaugurado em 2018, é a edificação que expõe, de forma concentrada, o que pulsa nesse enorme museu a céu aberto: a história geológica, climática e dos animais da região, por onde circulou o homem pré-histórico.

E é nesse aspecto, o do povoamento, que tomamos contato, no documentário, com as hipóteses controversas em torno das origens desse homem pré-histórico brasileiro.

“A Serra da Capivara representou uma mudança brutal porque se dizia que o homem tinha chegado vindo da Ásia, que chegou na América do Norte, e há cerca de 13 mil anos atrás veio para a América do Sul.” (Niède Guidon)

“Essa discussão sobre povoamento é super saudável, contanto que não seja uma coisa imperialista que tente dizer que a gente não sabe verificar, não sabe trabalhar. Até 20 mil anos, os norte-americanos aceitam, a Niède dizia, quer dizer que até 20 mil anos a gente sabe trabalhar; passou disso, não. A gente tem sítios pleistocênicos, como o Sítio do Meio com possibilidade de 25 mil anos, um pouco mais, e como o do Vale da Pedra Furada, com datação calibrada de 22, 23 mil anos.” (Uma pesquisadora)

“A gente vai ter aqui um esqueleto com crânio alongado que é o Zuzu, igual à Luzia de Minas Gerais. A gente vai ter aqui no Brasil, tanto a chegada de grupos asiáticos com crânio mais achatado, quanto os grupos com ascendência muito mais semelhante ao aborígene australiano e ao africano, de crânio alongado. Todos sapiens.” (Uma pesquisadora)

Niède ainda arremata dizendo que na Serra da Capivara os registros arqueológicos, não necessariamente de esqueletos, apontam para a presença humana há 100 mil anos. E que até o aparecimento recente de artefatos datados de 130 mil anos, nos EUA, eram os mais antigos da América.

A última cena do documentário não foca em uma mulher indistinta, mas no rosto de perfil claro de Niède Guidon. Uma cientista brasileira de 91 anos, ainda às voltas com seu Parque.

Solange Peirão – Historiadora e diretora da Solar Pesquisas de História

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

Redação

Redação

Recent Posts

Mais de 70 trabalhadores são encontrados em condição análoga à escravidão em um dos garimpos mais lucrativos da América Latina

Operação federal cita “servidão por dívida”, em que os garimpeiros realizavam atividade sem qualquer proteção

49 minutos ago

Mauro Cid pode ter negociado perdão judicial em troca da delação premiada, diz jornalista

Acordo poderia ajudar o tenente-coronel a pelo menos manter o cargo e não perder totalmente…

2 horas ago

Desoneração traz risco de nova reforma da Previdência, diz Haddad

Apesar da advertência, o ministro se disse confiante em um acordo para resolver o impasse…

3 horas ago

Brasil soma mais de 4 milhões de casos de dengue em 2024

Nove estados e o Distrito Federal já decretaram emergência em decorrência da dengue. Minas Gerais…

3 horas ago

Parece que uma anistia está sendo urdida, por Fernando Castilho

Muita gente já esqueceu as centenas de milhares de mortes pela Covid-19, a tentativa de…

3 horas ago

A Lei de Alienação Parental no Brasil, por Salvio Kotter

Entre a Tutela da Justiça e a Proteção da Infância, nem manter nem revogar, reformar…

3 horas ago