Crônica

As cotas mudaram a Escola Politécnica, por Luis Nassif

Ontem assisti a uma mega-formatura da Escola Politécnica de São Paulo, berço da Universidade de São Paulo. Foi à formatura de minha filha Beatriz. Preparei-me para ouvir discursos tecnocráticos, promessas de sucesso profissional aos formandos. Mas o que assisti aqueceu meu coração de brasileiro.

Já comentei aqui o que ocorreu na formatura do Dante, onde estudava meu enteado Vinicius, que tem síndrome de Down. Ele foi eleito a melhor pessoa e o melhor fotógrafo da turma, aplaudido de pé quando foi pegar seu diploma. E todos os discursos, de oradores e paraninfos, versaram sobre a inclusão e o respeito.

O mesmo ocorreu com a Poli pós-cotas sociais. Ontem formou-se a primeira turma enriquecida pelos cotistas.

Foi um espetáculo maravilhoso de humanismo, a começar do discurso do paraninfo e politécnico Marcelo Tas. Confesso ter pegado uma implicância enorme do Tas no período em que a mídia exigia profissões de fé no lavajatismo.

Mas seu discurso foi uma peça extraordinária, uma elegia à solidariedade, um ato de fé na escola pública, e um chamamento à responsabilidade dos alunos, de devolverem à sociedade o que receberam, estudando em uma universidade pública. E salientando, especialmente, as mudanças na Poli com o ingresso dos cotistas, tornando-a mais plural.

Todos os demais paraninfos repetiram o tema da responsabilidade social, da solidariedade, da importância de ajudarem na construção de um país mais justo.

Lembro-me em plena pandemia minha filha comentando o esforço dos alunos, de recorrerem aos ex-alunos para conseguir computadores para os cotistas participarem das aulas virtuais. Ou a briga em que se meteram com a reitoria para permitir que a sede do Centro Acadêmico ficasse aberta de noite, e por uma razão muito prosaica: os cotistas precisavam estudar para as provas na manhã seguinte e não conseguiriam se perdessem horas nos ônibus.

Houve vários depoimentos especiais emocionantes. Como a aluna que perdeu os pais na pandemia, e homenageou os mortos do período. E, especialmente, o formando que entrou pelas cotas contando sua primeira experiência no campus.

Dividiu os colegas que encontrou em dois grupos: os que já tinham carros e os que ainda não tinham completado 18 anos para ter carro.

Um dia pegou o ônibus interno, para ir ao refeitório. Ao lado dele sentou-se um colega sem a menor noção de como agir em um ônibus. Perguntava se o ônibus parava nos locais, o que deveria fazer para o ônibus parar. O cotista respondeu que bastava fazer o sinal. E o aluno levantou-se e começou a chacoalhar os braços para o motorista.

Entre emoções e pequenas pausas para xistes, todos saíram com a certeza de que as cotas não apenas deram oportunidade aos alunos mais pobres, mas melhoraram definitivamente a melhor escola de engenharia da América Latina – como não cansavam de repetir no evento.

Luis Nassif

Luis Nassif

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  • Como politécnico (Engenharia 75), fiquei muito contente ao ler esse artigo. Eu vim do interior de Minas e convivi com os colegas "Classe Média" meio sem jeito por não ter carro nenhuma referência social na cidade de São Paulo. As cotas colocaram mais pessoas "sem referência" e isso faz muito bem à USP, orgulho nacional.

  • Sensacional, esse é resgate da Escola Pública no nível acadêmico que refuta a teoria de que só ricos entram então o pagamento do ensino público é justo. Justo é o que está acontecendo a partir de agora Engeharia de qualidade para todos. Parabéns aos novos formados.

  • Parabéns à Beatriz, Nassif. Sou politécnico da Turma Civil 78. Saí do interior de São Paulo de uma pequena cidade, Floreal, e encontrei, à época, uma escola elitizada onde poucos pobres, como eu, tinham lugar. Negros, não me lembro. Mulheres, poucas. Virei-me como deu e com a ajuda da minha família. Quando estava para me formar fui à sala de um catedrático para que me ajudasse a conseguir um estágio na CESP. Ao saber que eu era morador da Casa do Politécnico - Cadopô, que abrigava os alunos mais necessitados, dispensou-me da sala com o argumento: A Cadopô é um "antro de comunistas". Triste, mas isso não me fez nenhum mal. Ao contrário.

  • Na minha época ainda haviam escolas públicas de qualidade e vários colegas tiveram elas por origem. Acompanhei o movimento do Grêmio na pandemia e a presidente foi ativa em proporcionar recursos aos alunos com menos recursos. Parabéns para essa nova geração de formandos. Entrarão no mercado de trabalho com mais empatia e dignidade.

  • Sou politécnico (turma 85), e a Escola Politécnica e a USP ficam ainda maiores e melhores recebendo nossos camaradas cotistas.

  • É muito bom ver que a Escola Politécnica não é mais uma extensão dos colégios particulares mais caros do país. A diversidade faz bem para qualquer lugar e a Poli estava precisando disso há muito tempo!
    Universidade Pública serve também para este tipo de compromisso com a sociedade: mudança social. E esperamos que os alunos formados ali também saiam com esta mesma missão de retorno para a sociedade.

  • A ultradireita tem um movimento planetário pra retomada do discurso protagonista ou hegemônico nas questões sociais, politica e econômica, começando pelas redes sociais e terminando, materialmente, na eleição de trastes nas nossas câmaras, presidências e senado ao redor do planeta. É sintomático, sistêmico e previsto em estudos do século passado ao atual. Que bom que demos um passo à frente, tomara que se transforme em uma maratona

  • Embora a Poli seja uma excelente escola, é senso comum que a melhor escola de engenharia do Brasil é o ITA. Inúmeros alunos aprovados no vestibular da Poli sonham em fazer o ITA, já a recíproca quase nunca é verdadeira.

  • Desafio o Nassif a escrever semelhante artigo, mas c a FEA-USP e a Sao Frsncisco. Aposto que os resultados serão mt diferentes

  • Estava mais que na hora de aplicar cotas. Desde muito tempo dizem que o corpo l docente das universidades eram gente progressistas mas na verdade muitos ao meu ver sempre foram pessoas que pensam em manter seus próprios privilégios. Sempre foram mto resistentes as cotas. O que mudou isso foi pressão dos movimentos sociais.

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