Belô II (*)
por Izaías Almada
Quando inauguraram Brasília, seus orgulhosos construtores chamaram-na de Novacap. Com inveja, por deixarem de ser a capital do país, os cariocas se autodenominaram de Belacap, pelos encantos óbvios da cidade. Os emigrantes mineiros, abundantes nas duas cidades, ironizaram o fato chamando Belo Horizonte de Merdacap. Pereira nunca entendeu assim e se revoltava com o maledicente epíteto. Admitia apenas o carinhoso Belô.
Dessas curiosidades me lembro ao observar os velhos camaradas à minha volta, quase todos já grisalhos. Dois deles viúvos e um ainda solteirão que, segundo as más línguas, não assumiu a sua homossexualidade. Só mesmo o Pereira para nos reunir a todos.
Pena que não pudesse mais nos dirigir a palavra. A viúva e os filhos desdobravam-se em cuidados com os visitantes, divididos entre a dor de perder o Pereira e a surpresa por receberem tantas pessoas no velório. Ali estava ele no caixão, arrumadinho dentro do seu único terno, empertigado e com a mesma expressão arrogante de sempre. Alguém se lembrou de cobri-lo com uma bandeira do América Futebol Clube.
O velório transformou-se num agradável exercício de memória. Colegas do curso primário, do ginasial e do trabalho. Ex-namoradas, irmãs e primas cobiçadas na adolescência, agora acompanhadas por suas filhas a lembrar-lhes os traços da juventude. A família do Pereira não imaginava o quanto ele era querido.
Pude encontrar o Névio, seu irmão Winston, que se casou com a Jane Fonda do pedaço, o José Francisco, arquiteto de Patrocínio, o Dilenildo, o Caldeira e o Continental, todos com carteirinha de cariocas e até o Momô, que desapareceu em São Paulo, onde também fui viver. Mara, Vandinha, Zildete, Lílian, coleguinhas do primário e agora algumas delas já avós. O Firenzzi Pinto, o Júnio alemão e ela, Verusca, minha primeira namorada de verdade, depois de uma paraplégica com quem flertei numa viagem de trem para Juiz de Fora.
Verusca surpreendeu-me. Já avó, apareceu com seu cabelinho curto encaracolado e um ar juvenil de fazer inveja a Meg Ryan.
A alegria foi tanta que chegamos a nos constranger diante daquela situação. Alguns de nós não nos víamos há trinta anos ou mais. Caminhos diversos, profissões as mais variadas, tínhamos apenas em comum o fato de termos nascido e passado, a maioria pelo menos, nossa juventude em Belô. E Belô era o Pereira.
Demo-nos as mãos e fizemos um círculo à volta do caixão. Pereira parecia sorrir. Um sorriso de satisfação por perceber que nós também amávamos a sua cidade, a nossa cidade, a cidade de onde com muito orgulho ele “nunca arredou o pé”.
____________________________________________
(*) – Conto do meu livro “Memórias Emotivas”/ Ed; Mania de Livro.
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro. Nascido em BH, em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
Taxação cambial, tarifas e restrição a exportações estão entre punições avaliadas pela equipe do candidato…
Força-tarefa composta por ministérios, Funai, AGU e Incra busca acelerar processo; quatro processos devem ser…
A população russa deu ao Kremlin carta branca total para exercer a punição máxima e…
Golpe inventa uma nova empresa de Elon Musk, a Immediate X1 Urex™, que pretende enriquecer…
Apesar da retirada da lista de privatização, governo Milei reforça intenção de fazer banco oficial…
Prêmio para soluções sustentáveis passa a aceitar inscrições em português; fundos de premiação chegam a…