Categories: Crônica

Em Nanquim, por Mariana Portela

Em nanquim

Mariana Portela (http://mizebeb.wordpress.com/)

A mala pronta, com antecedência milenar, queria ser aberta, precipitando-se ao destino. Meus olhos, encarnados, tentavam expulsar a frustração de uma semana perdida. E a ida ao aeroporto foi tortuosa. Parecia-me que me seria impossível recolher-me novamente à minha alma, depois de acontecimentos tão doloridos, tão ínfimos e miseráveis. O coração não estava à espera de surpreender-se, naquele fim de semana em Itapuã.

E quem foi que viveu um amor em cronograma? Quem escolheu, em verso, data e hora, o instante de contemplação? Qual ser humano desvelou a própria morada, a priori de algum pertencimento?

“A tinta de escrever, por suas forças de alquímica tintura, por sua vida colorante, pode fazer um universo, se apenas encontrar seu sonhador.” – disse, sabiamente Bachelard, em devaneios de matéria. Alguns lugares são feitos para nos dar abrigo. Ficam calmos, suspensos no vazio, até a chegada do intruso que lhes ocupará.

Para mim, o pouso de três meros dias na casa do Vinícius, na Bahia, foi dessa maneira. Como se aquele casulo já tivesse habitado meus poros há milênios do saber. Todo poema é ideia que viaja pelo sangue à frente das sinapses.

Mais tarde, percebi que a casa em Itapuã refletia os mesmos sentimentos amorosos que nutri por Lisboa e pelo Recife. Não era a primeira vez que me apaixonava daquela forma, pelas pessoas, pelos olhares demorados, pelos pensamentos entrelaçados ao nascer do sol.

Talvez seja assim que a vida se apresente em sua forma mais pura. O delírio encharca a realidade, e podemos beber alguns goles de nossa essência. Inteiramente desprovidos de máscaras, vestes ou distinções burocráticas. Na esquina bonita onde as flores outonais da prosa e da poesia se misturam, derramadas em sinfonia.

Apenas no átomo interestelar está a vida. Seja na vigília do acaso, em Kundera, na meditação das pedras, em Caeiro, no balão que Cony não soltou. Ou simplesmente na sapiência de Vinícius, que pediu perdão ao que amou de repente, embora fosse uma velha canção, ressonando em seus ouvidos.

Nas imagens depuradas dos poetas percebi a necessidade de estar atenta, pois não se pode abandonar o segundo à revelia de uma era perdida.  Lá se encontram a casa natal, a cabana mais pueril, a misteriosa clareira em meio à floresta. A caverna mais íntima crava suas inscrições rupestres em nós, antes.

Certas vezes, quando a sobriedade impera há muito, nascem utopias felizes, para aniquilar a melancólica lucidez. E os lugares que passamos a amar nos levam à infância roubada, esquecida nos mapas indecifráveis de nós mesmos.

Na madrugada triste, insone, cálida, venho a me perder nessas lembranças. De Lisboa, do Recife, da Bahia. Reinventar a minha ausência, imaginada. Sentir saudade de ter sido feliz. E de ter ficado absolutamente perplexa, nas cores que o dia enalteceu, enquanto a ficção escrevia – em nanquim – as minhas águas.

Luis Nassif

Luis Nassif

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