Crônica

Léthê, a padroeira do Brasil, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Léthê, a padroeira do Brasil

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Nosso país não se destaca pela produção científica, literária, tecnológica ou artística. Mas nós somos os campeões do esquecimento.

Nós esquecemos o genocídio praticado contra os indígenas, os maus tratos sistemáticos impostos contra os escravos negros, as torturas e execuções cometidas por agentes do Estado durante a ditadura. Lembrar seria uma maneira de preservar a humanidade das vítimas do “modo brasileiro de viver matando” e de impedir a desumanização daqueles que foram social ou racialmente marcados para morrer. Isso obviamente não pode ser feito.

O Brasil deixaria de ser Brasil se cada vítima de chacina policial ganhasse visibilidade, uma biografia, um rosto, uma história. O direito à memória é uma mercadoria rara e cara em nosso país. Nós só conseguimos lembrar dos caçadores de índios e degoladores de quilombola e dos generais-presidentes que comandaram uma imensa burocracia organizada para torturar e triturar adversários políticos. 

A estátua do Borba Gato é vigiada pela polícia. Nos últimos tempos,alguns jornalistas voltaram a chamar os ditadores de “democratas”. 

Esqueçam a chacina do Jacarezinho. Ela foi apenas um mini genocídio dentro do genocídio pandêmico. 430 mil mortes porque o presidente queria impedir que as pessoas vacinadas virassem Jacarés. 

Não podemos esquecer que Bolsonaro fez o que o Mercado desejava https://theintercept.com/2020/04/16/banco-central-presidente-coronavirus-economia/. A decisão proferida pelo STF interrompendo operações policiais nas favelas cariocas deve ser esquecida. A PM/RJ deve continuar sendo comandada pelo sadismo histérico de uma sociedade incapaz de lembrar que o policial que descumpre ordem judicial é apenas um criminoso.

O terror, o terror… aqui e agora. Lave apenas o chão, diz um personagem de Bacurau (2019) após a chacina no museu. As manchas de sangue nas paredes podem, assim, ser incorporadas ao prédio que preserva a lembrança da violência. Ninguém presta atenção aos buracos de balas deixados nas paredes das casas pobres e nos corações dos sobreviventes depois que as chacinas são esquecidas pela imprensa, pelos historiadores, pelos YouTubers.

Não é possível escrever um livro contendo as biografias de cada uma das  vítimas da violência policial no Brasil desde 1988. Se fosse escrito, nenhuma editora o publicaria. Publicada, essa obra monumental contendo milhões de páginas não seria lida por ninguém. Quem passasse uma existência dedicada a estudá-la adquiriria um conhecimento inútil, que dificilmente despertaria qualquer interesse público. 

A Constituição Cidadã, que garante a vida e proíbe a pena de morte, não foi condenada a morte por Jair Bolsonaro ou pelos terroristas da PM/RJ. A verdade é que ela nasceu morta. Durante algum tempo nós esquecemos que ela não poderia ter vida. Isso deu à ela uma sobrevida zumbi. Mas agora é quase impossível dizer que nosso sistema constitucional zumbi está vivo. 

Condenado ao inferno, o cabra safado Chicó lembra de apelar para a padroeira do Brasil (O Auto da Compadecida, 2000). Ele só faz isso porque já está morto. Quando estava vivo, Chicó era um prisioneiro da miséria e não podia lembrar qualquer coisa decente. Da fome ele lembrava, mais por imposição da natureza do que por uma necessidade de preservar e perpetuar a civilização que o transformou num faminto. Quando invadem as favelas os policiais não podem lembrar que os verdadeiros criminosos são os milionários cariocas que sonegam impostos e sugam as tetas do Estado.

A verdadeira Nossa Senhora do Brasil é a deusa do esquecimento. Felizmente, Léthê não tem uma estátua. Se tivesse os evangélicos provavelmente iriam destruí-la para que ela não pudesse mais ser lembrada.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

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