O ambiente político quando Lula brotou das entranhas da ditadura militar, por J. Carlos de Assis

O ambiente político quando Lula brotou das entranhas da ditadura militar

por J. Carlos de Assis


Eu era subeditor de Economia do glorioso “Jornal do Brasil” no ano de 1978. Paulo Henrique Amorim, que havia vindo de São Paulo com importantes contatos com o empresariado “progressista” local, era o meu editor. Politicamente, vivíamos o tempo de “abertura lenta, gradual e segura” do general-presidente Ernesto Geisel. Por essa fresta, Paulo Henrique introduziu o debate político na economia, transformando-a em economia política. Os empresários insistiam num mantra: queriam “diálogo” com o Governo da ditadura.
Paulo Henrique ajudou a atendê-los. Abriu espaço para eles no noticiário e na página  de opinião do  jornal. Mas havia um problema.
Por um critério de equilíbrio político de um jornal que se queria realmente progressista, era preciso contrapor à opinião dos empresários a opinião dos trabalhadores. Numa feira da indústria, no Recreio, no Rio, Cláudio Bardella, um dos progressistas,  afirmou que o empresariado aceitaria perfeitamente a legalização do Partido Comunista. Geisel foi visitar seu stand, sinalizando que não estava escandalizado.

Foi nesse ambiente que explodiram as greves do ABC. Paulo Henrique me incumbiu de editá-las, reunindo matérias oriundas de várias partes do país, na medida em que o movimento se alastrava para além de São Bernardo. Mantivemos um ritmo de duas páginas de cobertura de greve por dia. Nosso concorrente direto, O Globo, praticamente ignorava o assunto. Mesmo a imprensa paulista, dominada pelo Estadão – na época a Folha era irrelevante -, resistiu a dar uma cobertura digna à greve.
Nós mantivemos o ritmo.
Terminados  os quarenta dias de greve, Paulo Henrique me enviou a São Paulo para conhecer Lula. Sem obrigação de fazer matéria, apenas para entender aquele fenômeno que havia irrompido por dentro das entranhas da ditadura e se tornado, de forma quase imediata, um grande líder nacional dos trabalhadores e dos pobres. Passei um dia inteiro no Sindicato de São Bernardo, conversando com ele. Vi-me diante  de uma personalidade fascinante, segura, com um discurso acima de ideologias, colado estritamente aos interesses práticos de sua classe.
O que me disse ali, mais de 30 anos atrás, prevalece ainda hoje na maioria de seus discursos . Dizia-se, então, que as greves tinham sido espontâneas, obviamente para diminuir o papel de lideranças na sua condução. Lula me disse que levaram dois anos de preparação, considerando a estratégia, na indústria, de parar a ferramentaria, a qual, uma vez parada, parava o resto. Não gostava de negociar com estatais porque o Governo desmontava os acordos;  já a empresa privada brasileira estava numa posição intermediária, enquanto o melhor interlocutor era a empresa privada estrangeira. Isso não era ideologia, era prática.
Um fato curioso que contou dava a dimensão de sua liderança e de sua credibilidade em ambos  os lados do processo. No curso das greves de 78, animados pelo que acontecia em São Bernardo, muitos trabalhadores de outras empresas também entraram em greve, embora sem muita disciplina. Os donos, então, convocavam Lula para conduzir as negociações. Ele fez isso.
Os trabalhadores queriam aumento de 20%. Ele negociou com o dono, um alemão, e ficou acertado que o aumento sairia nessa escala. Uma semana depois os trabalhadores entraram em greve de novo. Queriam mais 20%. Lula os demoveu do intento, explicando que não poderiam rasgar o acordo feito antes.
Não é difícil reconhecer um gênio carismático. É só falar com ele ou ouvi-lo. Hoje, todo mundo sabe disso em relação a Lula. Na origem do fenômeno tudo era surpresa. A classe dominante o aceitava de alguma forma porque não via no seu discurso qualquer ameaça a seu poder real. Parte da esquerda o rejeitava, justamente porque lhe faltava a marca ideológica da luta de classes. Entretanto, na base de conquistas materiais, Lula foi conquistando a imensa maioria dos trabalhadores, e forçando a unidade em torno de um programa progressista sem radicalismos, ganho por insistência.
Nos estamentos dominantes da sociedade, os militares foram os últimos a acatar Lula como um líder político aceitável. Tendo sido um dos governantes que mais investimentos destinou ao equipamento das Forças Armadas, sucateadas por Fernando Henrique, não evitou que respingasse nele o inconformismo injustificado com a Comissão da Verdade que apurou os crimes da ditadura militar. Porém, mais do que prometeu como candidato, foi no exercício do poder que Lula conseguiu seus mais poderosos inimigos: a banca e os Estados Unidos. A banca, porque era uma ameaça latente aos juros estratosféricos. Aos EUA, porque ousou fazer um princípio de unidade sul-americana independente deles e, maior ofensa ainda, ajudou na construção dos BRICS, sinalizando uma aproximação com China e Rússia.
Redação

Redação

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  • Pois é, Lula continua negociando, mas como........

    Pois é, Lula continua negociando, mas como está no artigo, ele não gostava de negociar com o Estado, pois ele rompe com os acordos, e parece que ele esqueceu disto, pois negocia com um Estado desleal com tendências ao fascismo.

  • LULA PARA SEMPRE!!!

    Não há ninguém que não seja Lula, assim como nã há paz sem que haja justiça.

    Não há futuro que não passe por Lula, assim como não há homem que não seja sonho.

    Não há Brasil sem que haja Lula, assim como não há amor sem que haja liberdade.

    Não há descanso sem que haja respeito e espaço assim como não há ninguém que, hoje, tenha outro nome que não seja Lula.

    Citando Roberto I da Escócia: "A história é escrita por aqueles que massacram os heróis!" 

  • Tristeza danada

    Hoje acordei como se alguém muito próximo tivesse partido. Uma tristeza danada. Uma revolta maior ainda sabendo que neste exato momento um cara do bem tão difícil de ser encontrado hoje em dia, que fez o que fez pelo país mesmo tendo lá comentendo alguns deslizes, se encontra encarcerado numa cela solitária por capricho de uma elite sórdida e de um juiz fascista.Enquanto isso os verdadeiros bandidos do colarinho branco desfilam pelas ruas na maior.dando risada da nossa cara. Isso é o retrato do nosso Brasil.

  • Por paradoxo que possa

    Por paradoxo que possa parecer, prestigiar as forças militares brasileiras como fizeram Lula e Dilma, também é motivo para ataques dos EUA contra nós. O certo, segundo os objetivos daquele país estrangeiro, é fazer como FHC fez: desarmar as forças armadas. Todo mundo sabe da submissão aos EUA que nossos militares nutrem. Afinal um oficial, pelo ponto de vista da economia, é como um diretor de firma privada estrangeira, daqueles que mandam orgulhosos os filhos para estudar (ou mesmo tentar viver) na casa da matriz..

    Mas vai que uma fagulha de orgulho pátrio incendeie a tropa, que os militares brasileiros comecem a achar que devem defender o Brasil de ataques e sabotagens estrangeiras, já pensou?

  • ... e portanto, foi graças ao

    ... e portanto, foi graças ao "centrismo" do Inácio que a nação desfrutou, desde 2002, de dez anos de estabilidade na política e na economia... a partir de 2013 [com os primeiros característicos sinais do golpismo-desestabilização], o centrismo se torna perverso efeito: o petê não soube escolher sua candidatura presidencial em 2014; passa a ser chantageado pelo baixo-clero e pelo judiciário por ter-se tornado “amiguinho” de Temer, Palocci & toda classe político-lobista; e não se torna um “partido de esquerda”; isto é, não promove a formação de cultura política, de projetos específicos, e de análises do verdadeiro quadro nacional, etc; isto é, tudo continua só na base do discurso “direitos, justiça, democracia”, etc, etc... temos que eleger nosso candidato...!

    O petê não se tornou um partido “de esquerda”, mas, se tivesse se tornado, a confusão seria ainda muito maior, hein??!!

    Trágica confusão: a princípio, as palavras de ordem “manter a produção burguesa e fazer a distribuição de renda” seriam típicos dísticos para um partido denominado “social-democrata”, fundado por Covas e Montoro, etc, etc... entretanto, quis o destino que um sociólogo-governante, de plantão por dois mandatos, mandasse privatizar toda a “casa da mãe joana” nacional... e coube a um partido de origem sindical de metalúrgicos tentar a promoção social-democrata, mas agora com outro nome: é claro que os termos trabalhismo, social-democracia, democracia não têm mais uso & finalidade... [e republicanismo...] = !

    A questão central é que às elites nacionais e à produção burguesa interessam os projetos centristas... o seu Lula governou com a burguesia! [viva! é a burguesia quem trabalha com propinas!!!]

    Porém... há que se distinguir claramente o projeto golpista-desestabilizante do sistema internacional apátrida, anônimo, corporativo-feudal-financeiro-militarista, daqueles projetos das burguesias locais: as buguesias locais desejam ter as Repúblicas para-si... não desmontá-las, propriamente... [o juiz Mendes como exemplo] [e o golpe representado pelo juiz da vara de Curitiba como exemplo frontalizante do desprezo social daqueles que aceitam os encargos de agentes desestabilizadores]...

    Bem, o que parecia “combinado” em 2014, seria a cassação do Aécio Neves como patinho-feio, blindar todos os outros psdb, e “caçar” as troupes do pt, pmdb, baixo-clero... E a prisão do Inácio, também não estava “combinada”... era só tirar o gajo do páreo eleitoral.... A quem interssa todo este ba-fa-fá???

    http://governo-washington.blogspot.com.br/2017/04/44-ultima-pagina.html

    http://sanpedritoenlasierra.blogspot.com.br/

     

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