Um conto de natal, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Um conto de natal

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Isolado do mundo civilizado e, sobretudo, distante de seu próprio povo, existia um Estado que tinha aproximadamente 500 anos. Ele era gordo e desajeitado, violento e hipócrita, maldoso e intolerante e sofria de uma doença mental muito comum nos Estados que haviam sido implantados mediante a colonização de um novo território. Essa doença era o culto de um passado idealizado, a rejeição do seu verdadeiro passado e a ambição de um futuro desligado de todas injustiças que ele tinha cometido. Aquele Estado raramente lidava bem com seu presente, por certo.
Um dia esse Estado caiu nas mãos de um operário e começou a crescer e a distribuir renda. Mais do que se sentir incluídas politicamente, o que de fato não podia acontecer, as pessoas comuns incluíram alguma comida na suas ceias de natal. O fantasma da fome dos natais passados foi esquecido por algum tempo.
Mas esse operário era muito odiado pelos aristocratas, pelos burocratas do Judiciário, banqueiros e pelos políticos invejosos. Então ele foi perseguido e impedido de disputar uma eleição. O homem que ganhou a eleição era malvado.
O desemprego aumentou? Isso é um problema do mercado. A fome retornou? Meu governo é um sucesso. A população está triste? Eu estou cuidando dos meus filhos e não me importo com nada e com ninguém.
Como era previsível, o fantasma dos natais passados retornou. A ceia de natal era apenas as imagens de comida na televisão daqueles que não tinham nem emprego, nem renda, nem futuro.
Mas pessoas alimentadas não estavam felizes. Elas começaram a comprar armas e a atirar umas nas outras por qualquer motivo pueril ou fútil. O chefe daquele Estado doente incentivava a violência e não era capaz de reconhece que estava fazendo um mal à população.
Naquele Estado sem passado e sem presente, a população adoecia e não era capaz de reagir. Não havia mais esperança nos natais futuros. Muitos morreriam antes do carnaval. E até aqueles que podiam morrer de fome ou por falta de assistência médica não se importavam.
As imagens produzidas pela televisão dominavam as mentes e endureciam os corações. A justiça fugia dos Tribunais com medo de ser torturada pelos juízes.
E os juízes queriam ser donos do Estado e de tudo o mais. Eles também estavam descontentes. No fundo eles queriam assassinar alguém. E a pessoa que eles queriam assassinar era aquele maldito operário que ousou possibilitar às pessoas comuns ter o que comer no natal.
Alimentar o povo… Isso é muito perigoso, diziam os banqueiros. Quem fica com a barriga cheia começa a imaginar uma vida melhor.
Facilitar o acesso dos pobres às Universidades… Isso é inadmissível, diziam os membros da classe média. Meu filho não deve ter que disputar os melhores empregos com o filho da minha empregada. O mérito dele é não ter nascido numa favela.
Tratar os pobres como pessoas dignas… Não é possível admitir isso diziam os juízes. O lugar dos pobres é nas favelas deles ou nas nossas prisões mórbidas e asquerosas.
Durante aquele governo o natal foi abolido por aquele Estado. E mesmo assim ele foi religiosamente celebrado na televisão. Porque as imagens sedutoras devem ter mais vida quando o povo é condenado a morrer de fome no natal.
Naquele mundo de ponta cabeça, não havia espaço nem mesmo para um conto de natal. E mesmo assim, alguém apareceu e escreveu um. Nesse conto, a lembrança da barriga cheia era mais importante do que o medo de depor o governante malvado. O personagem principal da história era um frade que resolveu adotar o credo dos Dolcinianos.
Vocês não tem o que comer? Comam os ricos, ele dizia aos pobres. Os ricos nunca passam fome. Portanto, eles podem ser o prato principal na sua ceia de natal.
Vocês não podem esperar até o natal? Comemore hoje o natal que sua vítima não poderá ter amanha. E comam os ricos como se eles fossem um peru natalino gordo, saboroso e bem temperado.
Esse frade herético era um santo. Quando tentaram queimá-lo ele queimou aqueles que o perseguiam. Comam os ricos… Mas não esqueçam de comer aqueles que são serviçais deles também. O movimento que ele começou obviamente terminou em tragédia. Mas num Estado em que a tragédia dos pobres é o meio de vida dos ricos as coisas somente se equilibram quando os próprios ricos são devorados pela barbárie que semearam.
Naquele Estado, o natal tem fome de ricos agora. Ele precisa ser alimentado hoje e amanhã. Os ricos merecem ser devorados.
Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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