A dialética da família: de “Charlie e Lola” aos “Simpsons”

O irmão mais velho assume a imagem de mentor outrora ocupada pelos pais; duas meninas demonstram poder desenvolver valores sem a necessidade de qualquer tipo de influencia de adultos; e em outro caso um personagem no papel de pai cuja autoridade é rebaixada pela sua absoluta incapacidade de lidar com as tecnologias que o cercam. Pesquisa da Universidade Anhembi Morumbi desenvolvida por alunos da graduação da Escola de Comunicação encontrou nas animações infantis, adolescentes e adultas a recorrência não só do desaparecimento simbólico ou mesmo literal da figura dos pais como, também, do anacronismo ou deficiência em desempenhar os papéis que deveriam ocupar na formação social dos filhos. Além disso, personagens e narrativas expressariam a chamada “dialética da família” contemporânea: a crítica à autoridade patriarcal como anacrônica e autoritária ao lado de um modelo familiar igualitário e liberal foram historicamente emancipadores, mas, por outro lado, expôs as novas gerações às insidiosas e sedutoras novas formas de manipulação.

Em postagem recente intitulada “Por que os pais desapareceram do imaginário infantil?” discutíamos como o anacronismo da família como agencia socializadora, suplantada pela indústria cultural das celebridades e entretenimento ao oferecer novos modelos de “super-pais”, estava sendo representado por animações infantis onde se verifica uma significativa recorrência de situações onde os pais desaparecem simbolicamente e até mesmo fisicamente.  

O grupo de estudantes formados por Ana Lucia Borsari, Eduardo Gomes, Laryssa Valverde, Leonardo Salles e Nicolas Gomes da graduação da Escola de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM/SP) decidiu então aprofundar a discussão do post em um trabalho de iniciação científica para a disciplina Estudos da Semiótica, procurando matizar as animações em três tipos de públicos: infantis, adolescentes e adultos. Respectivamente, o universo da pesquisa foram “Backyardgans”, Charlie e Lola, Pink, Dink Doo”e “Milly e Molly”; Os Flintstones e os Jetsons; e o último grupo “Os Simpsons” e “Uma Família da Pesada”.

A ausência paterna física e simbólica

Partindo dos famosos “Estudos Sobre Autoridade e Família” de Theodor Adorno e Max Horkheimer (principais expoentes da chamada Escola de Frankfurt), o grupo partiu das seguintes hipótese apresentadas por esses autores: (a) a família moderna é um produto da ascensão da “família nuclear”; (b) a crescente exposição das crianças a outras agências socializadoras de uma sociedade de consumo; e (b) a intervenção terapêutica  sobre a autoridade dos pais.

A base econômica da autoridade paterna desaparece
com a proletarização

A chamada “família nuclear” contemporânea é resultante do colapso da antiga família patriarcal frente à crise econômica pós Primeira Guerra Mundial. A autoridade patriarcal começa a ser colocada em xeque com a proletarização dos pais, a diminuição da renda e a redução do número de familiares ao seu núcleo: pai, mãe e poucos filhos (enquanto avós são afastados para asilos).  A base econômica da autoridade paterna (negócios e propriedade que um dia os filhos herdariam) desaparece com a proletarização, produzindo a ausência dos pais tanto física (longas jornadas de trabalho) como simbólica (a figura paterna esvaziada economicamente deixa de ser um modelo de ego ideal).

Com a ausência paterna, esse ego ideal familiar é substituído por aqueles oferecido pela nova agencias socializadora à qual agora os filhos se expõem: os meios de comunicação e a indústria do entretenimento e celebridades que oferecerão novos e atraentes modelos de “super-pais” que rompem as fronteiras entre realidade e ilusão – modelos com uma nova moralidade onde o indivíduo somente é amado na medida em que ele torna-se “popular”, isto é, conformado às expectativas que esperamos que a sociedade e a mídia tenham de nós.

A dialética da família atual

Isso conduzirá a uma espécie de intervenção terapêutica sobre a autoridade familiar. Através de uma série de “saberes” especializados (psicologia, auto-ajuda, pedagogia etc.) os pais perderão a confiança nas velhas normas de educação e passam a hesitar em afirmar suas próprias colocações em face dos especialistas profissionais. De outro lado, para as novas gerações, o amor somente será possível de ser buscando rompendo com as tradicionais barreiras dos “preconceitos” e “autoritarismo” da família.

Em tudo isso, Adorno e Horkheimer perceberam um sutil jogo dialético: tais mudanças libertaram as crianças do despotismo patriarcal no lar, mas pouco fizeram para fortalecer sua posição diante do mundo exterior: o declínio do velho autoritarismo dos pais acabaria por se transformar em uma vantagem duvidosa na medida em que os jovens passam a ser expostos a novas formas de manipulação, de sedução sexual das mídias e sociedade de consumo e mesmo de exploração sexual direta.

Jovens são cada vez mais cedo expostos ao
mundo, produzindo a “multidão solitária”

Com o esvaziamento simbólico e anacronismo da figura paterna, os jovens são expostos cada vez mais cedo ao mundo público produzindo aquilo que o sociólogo David Riesman chamava de “Multidão Solitária”: indivíduos “alter-dirigidos”, isto é, sem convicções internas se conformam facilmente às expectativas do grupo, da sociedade e mídia em busca do amor pelo medo da solidão – o medo de tornar-se um “loser”, “freak”, impopular etc. por não se enquadrar mimeticamente aos padrões ao redor.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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