A nostalgia do futuro no foguete de brinquedo da NASA

Depois da corrida espacial que culminou com a chegada do homem na Lua em 1969 e de toda a construção da mitologia em torno dos astronautas como “eleitos” e símbolos da ideologia do “destino manifesto” norte-americano, ironicamente tudo isso se converteu em brinquedos e souvenirs licenciados pela NASA. Foguetes retros e nostálgicos de uma época que acabou, onde os riscos e gastos econômicos substituiriam o espaço sideral pelo ciberespaço . Toda a tele-exploração através de sondas automáticas e robôs desde o Projeto Viking em Marte nos anos 1970 resultaram na aposentadoria dos heroicos astronautas e o desenvolvimento da tecnologia telemática aplicada à endocolonização do planeta Terra por meio de satélites, estações orbitais e GPS para finalidades de monitoramento e controle.

 

Nessa semana meu filho de quatro anos chegou da escola acompanhado de seu amiguinho que, percebi, segurava um brinquedo colorido e brilhante. Aproximei-me para recebê-los e observei mais atentamente o brinquedo: era um foguete espacial, grande, aerodinâmico, com belas asas arredondadas. Atentei a um detalhe na fuselagem do foguete. Era o logo da NASA, a Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço dos EUA, em destaque no centro do foguete, o que dava ao brinquedo um ar de ser licenciado pela agência americana.

O brinquedo havia sido comprado pela Internet em um site chamado “Space Store & NASA Gift Shop” com produtos licenciados pela agência aeroespacial: roupas de astronauta, jogos e tudo o que envolve a conquista do espaço para crianças e jovens.

Uma franquia da NASA? Sim. Todo o imaginário da corrida espacial transformado em brinquedos e souvenirs. Há uma ironia nesse brinquedo: toda a heroica e épica aventura da conquista do espaço que culminou, em 1969, com a chegada do homem na Lua transformado em uma franquia que vende brinquedos com um indiscutível ar retro ou nostálgico. O design aerodinâmico e as asas arrojadas do brinquedo lembram os velhos tempos do início da corrida espacial representados em desenhos animados do Pica-Pau ou séries de TV como “Jornada nas Estrelas” das décadas de 1950-60.

Além disso, a mercantilização de toda mitologia da colonização do espaço sideral por naves tripuladas pelos astronautas que seriam verdadeiros pioneiros ou cowboys do futuro representa um fato bem concreto: o fim da era de riscos e gastos com os ônibus espaciais e a renúncia da conquista do espaço real para, agora, conquistar o espaço virtual com as tecnologias de tele-robóticas e telepresenças.

O Projeto Viking nos anos 1970: o início da
exploração virtual da galáxia

A tele-exploração substituindo os voos tripulados. Desde o Projeto Viking dos anos 70 onde uma sonda enviou fluxos de imagens de Marte para alimentar computadores, permitiu à NASA vislumbrar a possibilidade de explorar virtualmente a galáxia.

A última missão tripulada à Lua foi em 1972 com a Apolo 17, encerrando a era da utopia de colonização de novos mundos.  Com o Projeto Viking, lentamente a NASA desenvolveu as tecnologias telemáticas que decretariam o fim do imaginário épico da conquista dos espaços reais. Ainda na Guerra Fria, o presidente Ronald Reagan nos anos 1980 ressuscitaria o tom heroico com o projeto “Guerra nas Estrelas” com os ônibus espaciais e a antevisão de guerras galácticas contra os comunistas no espaço ao melhor estilo hollywoodiano dos filmes da saga “Star Wars”.

Hoje a China parece querer reviver esse imaginário retro quando anuncia um projeto de fazer o primeiro pouso na Lua até 2020, dessa vez com astronautas chineses carregando uma bandeira vermelha. Clara estratégia midiática para se firmar no cenário mundial como superpotência, já que seus objetivos reais estão na tele-exploração e telemetria: mapas tridimensionais da Lua feitos por sondas automáticas e estações orbitais para monitoramento e espionagem da Terra.

Portanto, o foguete espacial de brinquedo da NASA nos apresenta dois fatos: a primeira irônica ao representar essa constante revisita de uma época que não existe mais; e a segunda histórica, ao testemunhar as estreitas relações entre a Ciência (no caso, a Astronáutica) e a mídia desde os tempos heroicos da conquista tripulada do espaço.

A mitologia do astronauta

O poder ideológico da mitologia americana irradiada para o mundo baseou-se em dois personagens que representariam a personalidade do país: o Pioneiro (aquele forjaria a personalidade da nação através de um herói civilizador orientado para o progresso que uniria pragmatismo e ascetismo como valores morais) e o Cowboy ou o “Sobrevivente” (protagonista do “mito da fronteira” onde a conquista do Oeste forjaria a personalidade do país através de valores como a procura de oportunidades e a atitude enérgica perante as dificuldades).

Na sociedade pós-guerra a mitologia dos “pais fundadores da nação” (os pioneiros) foi substituída pelo mito mais enérgico do “Sobrevivente”. Afinal, era o momento da paranoia da Guerra Fria e os EUA necessitavam de heróis mais enérgicos e pragmáticos.

“Cowboys do Espaço”: a nostalgia
da mitologia dos “sobreviventes”

O “mito da fronteira” passou a ser revivido pelo complexo militar americano com a corrida espacial. A morte de três astronautas na Apollo 1 e as espetaculares explosões e incêndios nos projetos anteriores Mercury e Gemini criaram a imagem dos astronautas como “eleitos” que representariam o “destino manifesto” americano.

Séries televisivas como “Jornada nas Estrelas” (Star Trek, 1966) com a famosa epígrafe “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve” e os dramas existências de um astronauta solitário na música “Space Oddity” (1969) de David Bowie ajudaram a criar uma mitologia ocidental que fazia frente à ameaça comunista da Guerra Fria.

O filme “Cowboys do Espaço” (Space Cowboys, 2000), que mostra astronautas aposentados que são chamados na última hora para consertar um antigo satélite soviético, é mais um exemplar dessa franquia nostálgica sobre um personagem ultrapassado pelos custos econômicos atuais e, principalmente, pelas novas necessidades políticas e ideológicas: os inimigos hoje são outros. Os comunistas foram substituídos pelos RAVs (russos, árabes e vilões em geral), um inimigo capilarizado, mutante, que pode assumir múltiplas formas, de homens-bombas a maletas que podem carregar componentes nucleares.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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