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A vida antes das redes sociais em “Denise Está Chamando”

Por que um filme premiado em Cannes com o “Caméra D’Or” como “Denise Está Chamando” (Denise Calls Up, 1995) foi sendo pouco a pouco  esquecido nas prateleiras de VHS das locadoras pelas novas gerações? Talvez porque a narrativa tragicômica sobre alienação e estranhamento com o telefone tenha se tornado incompreensível para uma geração que euforicamente abraça as redes sociais onde a diferença entre noções como “presencial” e “simulação da presença” desapareceram. O filme é sobre uma geração onde telefone, secretárias eletrônicas e fax começavam a substituir as relações presenciais: sexo, morte e nascimento são eventos experimentados pelos personagens exclusivamente através do telefone com um mix de culpa e estranhamento. A comparação com o atual filme “A Rede Social” torna-se inevitável.

Estamos na era do e-mail, das chamadas telefônicas em espera, das secretárias eletrônicas e fax da chamada Geração X. É a década de 1990, uma época em que a comunicação não presencial começa a substituir a comunicação interpessoal: jovens que vivem em seus confortáveis isolamentos diante das telas de seus laptops imersos em trabalho, workhólics que não precisam mais encarar face a face amigos ou inimigos.

Embora o filme conte a estória de sete personagens, o principal personagem é mesmo o telefone. Todos são capazes de experimentar eventos relacionados com sexo, nascimento e morte (talvez as principais experiências de uma existência) através do telefone, sem qualquer contato interpessoal ao longo da narrativa. Todos experimentam um misto de culpa e alienação por nunca conseguirem ou, pelo menos, terem disposição para travar encontros presenciais. O trabalho é sempre a desculpa.

“Denise Está Chamando” é um filme sobre a geração pré-redes sociais onde havia um mal-estar nas comunicações impessoais. Ao contrário da atualidade onde isso desapareceu com os avatares, emoticons e eventos partilhados em fãs pages que criam a ilusão de participação e comunidade.

A narrativa inicia no dia seguinte a uma festa em que ninguém apareceu, mostrando uma conversação telefônica entre as amigas Gale e Linn. A partir dessa ligação o filme vai se desenrolando em uma sucessão de ligações e relacionamentos entre amigos que jamais se encontram. Gale e Linn são amigas, Gale tem um ex-namorado chamado Frank, que por sua vez possui um amigo chamado Jerry. Jerry conhece Bárbara através de Gale, que quer torná-los um casal. Martin recebe ligações de uma desconhecida chamada Denise que tem algo em comum com Martin, que é amigo de Jerry, que por sua vez é amigo de Frank que é ex-namorado de Gale, que é amiga de Linn e Bárbara, e temos a desconhecida Denise. E assim por diante…

O interessante nesse roteiro como todos vão se envolvendo de forma “virtual” onde não são necessários encontros pessoais graças ao telefone e secretária eletrônica. Todos estão sentados ou deitados, inertes ao telefone ou diante de seus laptops. Ironicamente, a única personagem que se desloca pela cidade de Nova York é Denise, grávida por inseminação artificial e que quer conhecer, através do telefone, o doador do sêmen. Tenta conhecer o pai do seu filho, criar alguma intimidade até o momento do parto quando, através do celular, “transmite” a experiência de dar a luz enquanto todos os personagens estão em espera telefônica acompanhando o evento em uma espécie de comunidade virtual (é a pré-história das webcans e flash mobs).

Enquanto isso, uma das personagens morre em um acidente de carro: seu grito e o barulho do impacto são gravados na secretária eletrônica da amiga. Paralelo a tudo isso, Jerry e Bárbara começam a viver fetiches sexuais através do telefone em cenas tórridas onde o aparelho transforma-se em um objeto fálico e de prazer erótico.

O duplo caráter do telefone: utilidade e fetiche

Olhando em perspectiva esse filme dos anos 1990, é marcante a diferença entre uma geração cujas comunicações interpessoais são estruturadas pelo telefone e a atual dominada pela chamada convergência tecnológica e a Internet.

Dois fatos inaugurais na História deixaram claro a existência do duplo caráter do telefone – o valor-utilidade e o valor-fetiche. Conforme relata Thomas Watson, assistente de Graham Bell, que se tornou a primeira pessoa a ouvir a voz transmitida por fios: “no momento em que Bell estava pronto para falar no nosso instrumento, um movimento de seu braço derrubou em suas roupas uma bateria de água acidulada. Na confusão do acidente, Bell gritou para mim: Mr. Watson, venha para cá preciso da sua ajuda. O grande bocal captou seu pedido de ajuda e eu ouvi cada palavra através do receptor em meu ouvido”. A primeira chama telefônica da História foi um pedido de socorro, antecipando o valor de uso da invenção.

Mesmo advertido para que não perdesse tempo com aquele “brinquedo infantil”, o imperador D. Pedro II, visitando um stand em uma Feira em Massachussetts comemorativa do I Centenário da Independência dos EUA em 1876, insistiu em experimentar o telefone. Ao ouvir, através do receptor, Graham Bell recitando Shakespeare gritou surpreso: “Meus Deus, isso fala!” – ao dizer “isso fala” ao invés de “Bell falou através disso”, D. Pedro II revelou que o caráter mágico ou fetichista supera a natureza instrumental e científica. 

Por isso, nossa relação com o telefone é de sobressalto e susto e ao mesmo tempo mágica fetichista e perversa. Recebemos as chamadas de supetão, ao primeiro sinal temos que estar prontos para ouvir, sem aviso prévio. Estamos diante de um telefone e temos que estar preparados para tudo: amigos, inimigos, amor, glória, tarados ou salvadores.

Como afirma Luiz Nazário em seu livro Telefone “o telefone facilita as comunicações apagando seus vestígios. É uma máquina de costurar relações com fios invisíveis”. Dessa maneira, o imaginário do telefone na cultura e no cinema passou a ser de estranhamento, alienação, incomunicabilidade, medo e paranoia. Se a televisão está associada ao imaginário das feiticeiras (ver à distância) o telefone só pode estar associado à loucura (ouvir vozes).

Na música popular o telefone está associado a canções de fossa, desencontros e distâncias que separam (“telefone”, Tim Maia; “Telefone”, Gang 90 etc.). No cinema assassinatos (“Disque M para Matar!” de Hitchcock), distância e solidão (“ET phone home!”, o lamento do alien de Spielberg em “ET”), ou a paranoia quando o telefone assume, acoplado a computadores ou gravadores, o papel de monstro (“Jogos de Guerra” 1983). Ou nos filmes de terror o canal para a disseminação do Mal (“O Chamado”, 2002).

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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