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Em “Revólver” o homem encontra seu pior inimigo: o Ego

Um dos filmes recentes mais subestimados, desprezado pela crítica e pouco visto pelo público. “Revólver” (2005) de Guy Ritchie é uma espécie de cavalo de troia: sob uma embalagem que comercialmente lembra seus sucessos passados como “Snatch” (2000), na verdade o diretor nos oferece uma complexa e instigante jornada interior de um protagonista imerso em um jogo de trapaças e violência. Ele terá que descobrir que o maior inimigo se esconderá no último lugar que você procuraria: no interior do próprio Ego. Por isso a narrativa será sempre pontuada com a famosa exortação gnóstica – “Acorde!”.

Depois de filmes como “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (1998) e “Snatch – Porcos e Diamantes” (2000), o diretor Guy Ritchie teve uma ascensão meteórica: de cineasta independente a um dos queridinhos de Hollywood. Passou a ser rotulado como o “Tarantino britânico”. Mas depois do fracasso com “Destino Insólito” (2002), a mesma indústria que o celebrou passou a esquecê-lo, principalmente depois que ganhou o “prêmio” Framboesa de Ouro de Pior Diretor. Durante seu autoexílio em se país natal planejou por três anos uma resposta. E não poderia ter sido mais brilhante com o filme “Revolver”.

                O pôster promocional, a escolha dos atores e o título pareciam nos dizer que Guy Ritchie estava de volta ao estilo que o consagrou: narrativas em humor negro sobre gangsters, trapaças e vinganças, com linhas de diálogos espertas e corrosivas e edição próxima ao estilo dos games de computadores. Mas o diretor enganou a todos: debaixo da embalagem sedutora se escondia uma narrativa que se torna cada vez mais complexa, uma intensa reflexão sobre quem é o verdadeiro inimigo do homem. Para Guy Ritchie seria o próprio ego humano.

                Com “Revolver” não só o diretor deu uma resposta à máquina Hollywoodiana que o desprezou, como fez uma verdadeira psicanálise dos personagens que se notabilizaram nos seus filmes anteriores de 1998 e 2000 – os trapaceiros, os vingativos, os poderosos mafiosos e a natureza psíquica do jogo que une todos.

O Filme

                Jake Green (Jason Statham) é um homem de jogo. Gosta de apostar com frequência. Ganha sempre. Um dia Green vai jogar com Macha (Ray Liotta), um poderoso homem dono de um cassino local e mestre do crime organizado. Há cerca de 11 anos Jake envolveu-se num esquema de Macha, o que levou a uma condenação  de 7 anos de prisão na solitária. Desde aí Jake procura vingar-se dele, através de uma série de golpes que o levam a progressivos prejuízos financeiros.

Green aproveita esta opurtunidade e vence humilhantemente Macha. Furioso, Macha ordena aos seus homens que matem Jake. Jake consegue sobreviver inacreditavelmente à primeira tentativa de homicídio. Um carro para perto de Jake e aí conhece a dupla Avi (André Benjamin) e Zack (Vincent Pastore). São dois homens misteriosos que propões a Jake o seguinte negócio: “Já lhe salvamos a vida, a próxima não será de graça.”, para assegurar a proteção da sua vida, Jake tem que respeitar duas condições. Tem que dar a estes dois sujeitos todo o dinheiro que tem, absolutamente tudo. A segunda condição é não fazer perguntas e obedecer a tudo o que eles digam. Avi afirma “Nós não somos o inimigo. Mas vai aprender a nos temer e nos respeitar mais que ao teu pior inimigo.”

Mas há um personagem poderosíssimo e onipresente na história: Mr. Sam Gold. Macha deve dinheiro a ele. Mr.Gold é implacável e temido por todos e diz-se que sabe tudo e que ninguém pode enganá-lo. O curioso é que Mr. Gold é tão misterioso que nem sequer aparece no filme. Paralelamente a este problema, Macha tem que lidar com Jake Green, pois descobre no meio da narrativa que existem contas passadas a ajustar com ele. O enredo de “Revolver” começa a ficar cada vez mais complexo e instigante, em um roteiro sem falhas cujo ponto forte é a edição onde cortes rápidos, contrapontos e sucessivas quebras de eixo pontuam os diálogos interiores dos personagens, e cada vez mais as diferenças entre realidade e delírio começam a ficar instáveis.

Guy Ritchie se encontra com Jung

                Quanto mais o filme avança, mais ele se torna enigmático e metafísico. Em muitos momentos o espectador pensa estar diante de linhas de diálogo esotéricas, repletas simbologias cabalísticas e numerológicas. O próprio diretor em entrevistas diz o contrário: “Eu não acho que há influências cabalísticas sobre o filme. Se houver, eu gostaria que alguém me apontasse onde elas estão. Mas o filme é sobre o conceito de Ego. É sobre essa trapaça.” (ORANGE, Alan. “Exclusive: Guy Ritchie Cons His Own Ego in ‘Revolver’”In: MovieWeb, 29/11/2007).

                E ele fala mais:

O Ego é uma coisa que está em seu subconsciente. Você acredita que ele controla você. Mas você o controla. Este filme é sobre o fato de que você está completamente encarcerado pela sua auto consciência. Agora, o truque é, nem sua mente, nem o Ego vai deixar você compreendê-lo e ser claro sobre isso. É muito feliz a ideia de que Ego é um cara muito violento e que quer ser notado. O ego quer que você continue a pensar nisso. Por quê? Porque se você começar descobrir o que é realmente o ego, então você começa a tomar a tirar o poder dele. É como um fantasma interno, suponho.” (IDEM).

               

A partir do ponto em que o protagonista Jake Green fala que “somos apenas macacos embrulhados em ternos suplicando pela aprovação dos outros”, a narrativa começa a mergulhar numa jornada interior do personagem que faz lembrar o filme “O Clube da Luta” (1999): todos os personagens ao redor de Jake parecem ser projeções ou partes da luta psíquica do protagonista com ele mesmo. Por trás de trapaceiros autoconfiantes e poderosos se esconde o medo e a ansiedade infantil de querer ter a aprovação dos outros.

            Para Guy Ritche, o Ego seria isso: uma cristalização de uma autoimagem a partir de uma expectativa que achamos que os outros têm de nós – e tudo isso composto através de medo e sofrimento.

                Dessa forma “Revolver” aproxima-se da perspectiva da formação do Self na psicanálise de Carl Jung. Para Jung o Self  é a resultante da unificação da consciência e inconsciência no processo de individuação, formando o psiquismo como um todo. Com o tempo, um ego separado e consciente começa a se desenvolver, rompendo com o original sentimento de unidade. Esse seria o lado escuro do Self: por ser a força mais poderosa do psiquismo, no dia-a-dia ele começa a se projetar em forças poderosas como Estado, Deus, Universo e Destino, fazendo o indivíduo perder não apenas o contato com a realidade, mas a ansiosamente procurar o amor/aprovação nessas entidades. O outro lado da megalomania do Ego seria a destrutiva inflação da personalidade direcionada pelo medo e sofrimento por não ter sua autoimagem correspondida.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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