O Ceticismo Gnóstico de Jean Baudrillard

 


 

Falecido em 2007 aos 77 anos, intelectual iconoclasta e provocador, influenciou o cinema (homenageado no filme “Matrix” na sequência do livro oco cuja capa é o título de uma obra de Baudrillard), televisão, web art e duas gerações na sociologia. Mas, o que é pouco conhecida, é a matriz gnóstica do pensamento no qual se baseia suas obras das três últimas décadas. Para ele a realidade do mundo fora seduzida pelo Mal e acreditava na impossibilidade do conhecimento através de algum princípio racional ou materialista.


Sempre o pensamento de Baudrillard esteve associado a uma crítica materialista da sociedade de consumo e da cultura midiática. Se nos primeiros livros encontramos um pesquisador sóbrio e cuidadoso com os conceitos envolvidos nos estudos sobre signos e a semiologia, nas três últimas décadas encontramos livros de um pensador com insólitos paradoxos, provocações, aforismas hiperbólicos, paroxismos.

De repente Baudrillard parece ter sido tomado por um “terrorismo metafísico”: “Para mim a realidade do mundo foi seduzida, e isso é o que é fundamentalmente maniqueísta em meu trabalho. Tal como os Maniqueos, não acredito na possibilidade de conhecer o mundo através de algum princípio racional ou materialista  – daí a diferença entre o meu trabalho e o processo de evocar a dúvida radical em Descartes”[1]


Desde a década de 1980 Baudrillard empreendeu uma rigorosa demolição, através de um ceticismo radical, de todo e qualquer referencial empírico ou real seja no pensamento científico ou na própria sociedade: a Economia se converte em ritual Potlach; a escala de necessidades humanas que justificaria a sociedade de consumo jamais existiu; Guerra do Golfo ou o atentado aéreo ao WTC em 11 de setembro de 2001 foi um “não-acontecimento”, simulacro midiático; o real foi assassinado através de um “crime perfeito”: a hegemonia do imaginário da presunção da catástrofe, mais mobilizador do que o imaginário do progresso.


Baudrillard viu por todos os lados a “sedução da realidade do mundo” pelo Mal. É evidente nessa lógica a influência do pensamento gnóstico, principalmente de Mani como demonstra essa outra declaração: O mundo não é dialético, ele tende para extremos, não para equilíbrio, tende para o antagonismo radical. Esse é também o princípio do Mal.”[2]


Portanto, vamos iniciar nessa primeira postagem uma investigação sobre as conexões entre o pensamento de Jean Baudrillard e o Gnosticismo.

“Um peculiar tipo de ceticismo”


Os textos de Baudrillard têm seduzido muitos pesquisadores. Suas análises da cultura, mídia e sociedade servem de fundamento tanto para as análises de crítica de fundo marxista quanto às hipóteses pós-modernas. Porém, a maioria das leituras das obras de Baudrillard, principalmente da sua fase pós-marxista, procura fugir ou ignorar seu terrorismo metafísico e seu niilismo gnóstico. Não é fácil para os leitores de Baudrillard compreender a insistência de uma formulação baseada em princípios tão arcaicos como o Bem e Mal.


 

O ceticismo radical do 
grego Pirro

 

A leitura de conceitos tão caros da obra baudrillardiana como “simulacro”, “hiperrealidade”, “aparência”, “simulação” se esvazia ao contrapô-los ao pano de fundo da tradicional crítica da ideologia como mera “falsa consciência”. Ao interpretar estes conceitos como simples munição para os argumentos de crítica à manipulação midiática ou da dominação política, acaba-se deixando de lado conceitos de difícil compreensão como “reversibilidade”, “troca simbólica”, “precessão da simulação”, as sutis oposições entre o “signo” e o “simbólico”, assim como entre “simulação” e “simulacro”. Tal leitura procura fugir do aspecto mais virulento e radical da obra de Baudrillard: a influência da especulação metafísica gnóstica, principalmente de origem Maniqueísta e no ceticismo grego de Pirro.


Virulento e radical, porque tal influência traz em seu bojo um violento e peculiar tipo de ceticismo em relação ao primado do racionalismo ocidental que distingue claramente real/aparência, verdade/mentira, ilusão/realidade ou, mais precisamente, conduz à negação do próprio estatuto da representação como o fundamento de toda e qualquer teoria da linguagem ou pensamento crítico.


Muitos autores pressentiram esta radicalidade no pensamento de Baudrillard. Morris e Foss, por exemplo, passam ao largo na admissão das influências gnósticas maniqueístas, mas admitem que seja a obra de um homem marcado por “raízes mágicas” e um “peculiar tipo de ceticismo”.[3]  Por outro lado Wernick, Genosko e Botting[4] perceberam o Maniqueísmo do pensamento baudrillardiano, mas negligenciaram o ceticismo radical do grego Pirro.


Antes de contarmos a história de como Baudrillard tornou-se o primeiro metafísico do ceticismo na moderna filosofia ocidental, vamos traçar um breve esboço destas origens gnósticas.


Jatos contra arranha-céus: um pensamento Maniqueísta


Mani, filósofo gnóstico, que viveu no Irã no século III DC, sustentava que o cosmos é dividido em dois poderes opostos: Bem e Mal, Luzes e Trevas, Espírito e Matéria. Influenciado pelo dualismo de Zoroastro, Mani cria uma visão de alta intensidade dramática: a doutrina das Três Eras que é a chave para o gnosticismo de Baudrillard.


No início o universo foi dividido entre deidades das Trevas (habitando os círculos materiais) e da Luz. A certa altura o mundo material atacou as regiões espirituais. Para contra-atacar, Deus criou um ser humano primordial (anthropos, uma figura cósmica não ligada a Adão ou a outros seres humanos, a não ser de forma indireta) para descer ao mundo material e combater as forças das Trevas armado com cinco elementos (fogo, vento, água, luz e éter). Mas foi ostensivamente derrotado e aprisionado. O Rei da Luz enviou, então, um espírito para trazer esse anthropos de volta para casa. Porém, apenas a sua forma conseguiu retornar, deixando para trás os cinco elementos que compunham a sua alma. Para libertar essas partículas, Deus criou o cosmos com Adão e seus filhos. A cada momento, a criatura humana, um anthropos decadente, ouve o chamado da luz para que, ao cultivar o espírito, emancipe partes da alma até que todas as almas sejam libertadas e a matéria seja aniquilada (Terceira Era: a separação da Luz das Trevas). É claro que as forças das Trevas procuram impedir esse intento por meio de uma dramática luta cósmica.


Aqui, a criação do mundo material ocorreu na Segunda Era, quando anthropos foi aprisionado pelas forças das trevas. O mundo material foi criado tendo o Mal o controle do processo. A ele Baudrillard refere-se como o “Gênio do Mal da matéria”.


Esse “Gênio do mal” é também conhecido pelos gnósticos como o Demiurgo que deu vida a um mundo instável e defeituoso, no qual uma porção da divindade caiu como prisioneira. O gnosticismo acredita que se o mundo é falho é porque foi criado de maneira falha. O mundo não decaiu, foi imperfeito desde o começo. Foi obra de uma divindade imperfeita, o Demiurgo, uma forma híbrida de consciência emanada de um plano transcendente e harmônico (a Pleroma) a partir do Deus original e perfeito. Ele fez a forma, mas não a vida interior do mundo. Inebriado com o poder e por acreditar ser o único deus do universo, aprisiona o homem e a sabedoria (Sophia) no interior da criação, aprisionando-os. Com a ajuda dos maliciosos Arcontes, distrai o homem ao seduzi-los com as ilusões materiais, fazendo-os renunciar a qualquer tentativa de encontrar dentro de si a fagulha de Luz que os reconduziria de volta à Pleroma.


 

O “11 de setembro”: a reversibilidade entre
o Bem e o Mal

 

E por que este mundo material criado pelo Demiurgo é imperfeito? Por que nele encontram-se inconciliáveis e, ao mesmo tempo, inseparáveis, o Bem e o Mal. Dessa forma, para cada ato bom produz-se um efeito perverso: a produção reverte-se em destruição, a paz produz a guerra, a realidade a ilusão, e assim por diante. Veremos que esta convicção gnóstica no pensamento de Baudrillard é a base para a crença de uma reversibilidade simbólica constitutiva do mundo, ou seja, o de que a realidade foi seduzida pela ilusão nas suas origens, produzindo uma reversibilidade perversa escamoteada pelo jogo das aparências. Dessa maneira Baudrillard vai analisar os atentados contra o World Trade Center em 2001: “O ponto crucial sobre o 11 de Setembro é o seu poder em comprovar como Bem e Mal avançam juntos, como partes de um mesmo movimento”[5]. E ele explica depois: “a realidade do mundo é totalmente ilusória, acompanhada pela sedução original, porque um gênio maligno a criou para subjugar Deus”[6]


Na sua análise sobre os atentados de 11 de setembro, Baudrillard precisa ainda mais essa reversibilidade entre o Bem e o Mal:

“Esse é precisamente o ponto crucial – a total incompreensão da parte da filosofia ocidental, da parte do Iluminismo, sobre a relação entre o Bem e o Mal. Ingenuamente acreditamos que o progresso do Bem, o seu avanço em todos os campos (ciências, tecnologia, democracia, direitos humanos), corresponde a derrota do Mal. Ninguém parece entender que o Bem e o Mal avançam juntos, são partes de um mesmo movimento. O triunfo de um não eclipsa o outro – longe disso. Em termos metafísicos, o Mal é considerado como um infeliz contratempo, mas esse axioma, do qual todas as formas maniqueístas de batalhas entre o Bem o Mal derivam, é ilusório. O Bem não conquista o Mal, ou vice-e-versa: ambos são irredutíveis em relação ao outro, e inextrincavelmente relacionados.”[7]

Através de um jogo de aparências (simulações e simulacros), todos os sistemas (econômicos, políticos, midiáticos, sociais etc.), procuram encobrir ou ignorar esta reversibilidade simbólica: o fato de que o Real e o Bem foram seduzidos pelo Mal, que o destino de cada ação no sentido do Bem (progresso, transparência, desenvolvimento, funcionalidade, racionalidade etc.) resulta em uma espécie de efeito entrópico: dissolução, regressão, opacidade.


Por isso Baudrillard vê nos jatos que se chocam contra as torres gêmeas um fato de moralidade ambígua, para além do Bem e do Mal, a “pura aparência”: uma singularidade, um momento efêmero que não pode ser interpretado ou assumido por algum sentido ou valor. Como fato midiático, os atentados terroristas demonstram a própria reversibilidade dos sistemas de comunicação. Os jatos chocam-se não para a História, mas para as ondas concêntricas da mídia. As câmeras nada mais conseguem mostrar do que a opacidade de um fato que apenas aconteceu por que as mídias estavam presentes (veremos mais adiante que Baudrillard vai chamar esses episódios de “não acontecimentos”). Da transparência à auto-referencialidade, a presença do Mal nos sistemas midiáticos. Nenhuma interpretação moral ou política pode ser dada: o atentado foi uma ação sem sentido político ou estratégico –  não visava a tomada do Poder e, muito menos, a desestabilização do sistema político. Espetáculo puro, aparência pura. Mas, através de uma estratégia de simulação, a mídia procura racionalizar, tenta trazer o episódio para o seu horizonte de sentido: fanatismo islâmico? Vingança de Bin Laden? Bonapartismo Civil de Bush? Todas as alternativas de explicação do porquê do atentado terrorista se anulam e se equivalem numa espiral interpretativa sem fim.


O objetivo gnóstico nesse drama cósmico é a purificação, isto é, destilar o Bem do Mal, Luz das Trevas, Deus do Demônio, Espírito da Matéria. Já o objetivo da gnose baudrillardiana é o de encontrar a “pura aparência” ou “o efêmero momento no qual as coisas surgem antes de assumir qualquer sentido ou valor.”[8] Ela emerge do “jogo das aparências” dos sistemas, para expor a dissolução de toda racionalidade ou finalidade na ritualização, no espetáculo, no puro simbólico. “De um lado: a política, a economia, produção, o código, o sistema, simulação. Do outro: potlach, desperdício, sacrifício, morte, o feminino, a sedução e, no final, o fatal.”[9]

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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