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Os pesadelos da ciência em “Ladrão dos Sonhos”

“Ladrão de Sonhos” (La Cité dês Enfants Perdus, 1995) é um dos poucos filmes a representar o cientista longe dos clichês do “louco” ou do “diabólico”, condenado à punição por tentar se equiparar a Deus. A dupla de diretores Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet (“O Fabuloso Destino de Amelie Poulain”, 2001) cria uma estranha comédia de humor negro onde o cientista é retratado como um Demiurgo: através de uma Ciência prometéica, cria um cosmos corrompido onde o sono não tem sonhos. Por isso, ele terá que raptar crianças para extrair delas as imagens dos sonhos e trazer algum élan para um mundo sem vida. 

Na história do cinema há uma longa tradição em representar “cientistas” (sábios, gênios, magos, alquimistas, mágicos ou o cientista propriamente dito) como personagens enlouquecidos, estranhos, sociopatas, manipuladores ou simplesmente amorais e anti-éticos. De qualquer forma, todos eles são punidos ou por ultrapassarem os limites estabelecidos pela moral da civilização ou por tentarem se equiparar a Deus. Exemplos não faltam através dos mais diversos gêneros: “Frankenstein”(1931), “O Cérebro Que Não Queria Morrer” (The Brain That Wouldn’t Die, 1962), “O Parque dos Dinossauros (Jurassic Park, 1993), “A Ilha do Dr. Moreau” (The Island of Dr. Moreau, 1996) etc. 

Mas poucos filmes apresentam estes personagens como “Demiurgo” (para Platão era aquele que modela a matéria caótica e para o Gnosticismo o criador do Mundo Inferior onde o homem está aprisionado ), isto é, não mais como personagens puníveis moralmente por tentarem se equiparar a Deus, mas como artífices que fracassam pela presença do Mal nas suas criações. 

Essa elaboração do personagem do cientista no cinema como um Demiurgo tem suas origens em narrativas míticas das escrituras gnósticas: o Demiurgo como uma forma híbrida de consciência emanada dos planos superiores, criadora do cosmos como uma cópia imperfeita de Planos Superiores e essencialmente corrompida. Inebriado pelo Poder, julga ser a única divindade do Universo porque esqueceu as suas origens. Sabendo que o seu cosmos é uma criação física imperfeita, necessita da fagulha de Luz humana para pô-lo em funcionamento. Por isso, mantém a humanidade prisioneira através do sono. 

Cristoff, o poderoso diretor de um gigantesco reality show que aprisiona o protagonista no filme “Show de Truman” (The Truman Show, 1998) é um exemplo de filme que apresenta uma experiência televisiva por uma perspectiva simbólica do Demiurgo. 

O filme “Ladrão de Sonhos” (La Cité dês Enfants Perdus, 1995) da dupla Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet (“O Fabuloso Destino de Amelie Poulain”, 2001) é um outro exemplo. Como veremos, o filme praticamente segue a descrição que fizemos acima sobre o personagem gnóstico do Demiurgo.

Trata-se de uma narrativa claramente baseada em antigas cantigas de ninar, porém com um olhar pós-industrial: alguma coisa entre a estética de Tim Burton e os planos de câmera delirantes de Terry Gilliam. Uma produção basicamente analógica com poucas CGI, com gigantescos cenários e navios puxados por guindastes em uma Paris surreal banhada por um mar esverdeado, lembrando muito a animação “As Bicicletas de Belleville” (2003). Toda a atmosfera do filme é dominada por um colorido abrasivo, criando uma espécie de filme “noir” colorido. Para incrementar o clima de pesadelo e bizarrice, os figurinos foram assinados pelo estilista Jean-Paul Gaultier. 

O sucesso anterior da surreal comédia “Delicatessen” (1991) permitiu que Caro e Jeunet realizassem o sonho de filmar o roteiro de “La Cité dês Enfants Perdus” escrito há 14 anos. O filme custou 14 milhões de dólares, o mais caro a sair da França na época. 

A estória narra a jornada de um marinheiro ex-caçador de baleias chamado One que tem o seu pequeno irmão sequestrado por um estranho grupo chamado de “Ciclopes” a mando de um cientista maluco chamando Krank. Este cientista envelhece tristemente em uma torre no meio do mar na companhia de uma estranha trupe composta de diversos clones de outro cientista maluco desaparecido. São produtos de experiências genéticas mal sucedidas, juntamente com uma anã e um estranho cérebro esverdeado que vive dentro de um tanque com água e se comunica por meio de alto falantes, alem de sofrer terríveis crises de enxaquecas. 

Krank arregimenta os Ciclopes (uma espécie de estranho grupo fundamentalista religioso) para sequestrar crianças menores de cinco anos com um diabólico propósito: através de uma estranha máquina ele rouba os sonhos, tentando absorver as imagens mentais produzidas pelos pequenos para poder também experimentar sonhos. Incapaz de sonhar, Krank envelhece rapidamente, o que torna sua presença ainda mais assustadora para as crianças confinadas: elas somente conseguem ter pesadelos, tornando o experimento de Krank um fracasso ao longo do filme. 

Criação e Queda 

Em entrevista sobre o filme, Marc Caro afirmou que os sonhos na narrativa representam uma inocência inatingível: “As crianças são um símbolo de inocência no filme. E você mantém sua inocência se você sonha” (Veja “The City of Lost Children – na interview with Jean-Pierre Jeunet and Marc Caro”). 

O mito da Inocência relaciona-se diretamente com o mito gnóstico da Queda. Diferente da narrativa mítica do Gênesis bíblico canônico da Criação/Queda motivada pelo Pecado e a destruição do Paraíso original, a concepção gnóstica identifica a Queda com o próprio ato da Criação: no princípio não era o Verbo, mas a Crise. Portanto a Inocência não está relacionada com a nostalgia de um estado puro anterior ao Pecado, mas com a Luz ou Energia Vital presente no interior do homem que se manifesta, entre outras formas, através dos sonhos e fantasias. E é este élan que o Demiurgo busca para por em movimento um cosmos construído a partir de formas vazias. 

Krank tenta capturar as imagens mentais dos sonhos infantis (a “inocência”) para que ele próprio não pereça. Por isso, criou um cosmos (a Paris surreal e pós-industrial construída pelos incríveis cenários) onde funciona no subterrâneo o esquema de rapto de crianças. 

O humor negro da narrativa explicita um universo onde as crianças são exploradas por duas megeras xifópagas que as obrigam a cometerem furtos. São crianças que vão se tornando brutalizadas e até mais adultas que o próprio marinheiro One. Será com o pequeno grupo de ladrõezinhos que ele irá se aliar para tentar resgatar o seu irmão preso na torre de Krank. No sonho reside o último refúgio da “inocência”, isto é, a fantasia de que é possível um mundo diferente daquele pesadelo. 

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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