Rebelião gnóstica e Hipótese Fox Mulder na série “Mr. Robot”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

A série de TV “Mr. Robot” (2015-) de San Esmail é vista pela crítica como um mix de “Matrix” com “Clube da Luta” onde a violência de socos e Kung Fu é substituída pela cultura do cyber-ativismo hacker. Mas a série vai mais além. Entra nos temas principais do gnosticismo sci-fi do escritor Philip K. Dick: paranoia, amnésia, esquizofrenia e identidade em um sistema onde a mentira é a base de toda a confiança: um sistema econômico onde débitos e dívidas se sustentam na crença de que, apesar de toda a virtualidade das transações financeiras, o dinheiro existe em algum lugar como base moral de todo o valor. E tudo pode ser destruído da noite para o dia por hackers que pretendem salvar o mundo através de linhas de programação. Como explicar essa mensagem de rebelião gnóstica em série de TV em uma grande rede dos EUA? Talvez a chamada “Hipótese Fox Mulder” explique. 

“Compramos coisas que não precisamos com o dinheiro que não temos para impressionar pessoas que não gostamos”. Essa fala de Tyler Durden no filme O Clube da Luta (1999) é uma rápida descrição do motor psíquico da economia negativa atual que se expande por meio de débitos e dívidas.  Situação paradoxal: quanto maior a capacidade de endividamento de uma economia, maior sua “riqueza” com a expansão da financeirização e a sua base tecnológica: microinformática, conexões rápidas de fibra ótica, telemática e integração dos bancos de dados das praças financeiras.

Tyler Durden arquitetava o Plano Caos: mandar para os ares os prédios das empresas de cartão de crédito para zerar todas as dívidas – sobre o filme Clube da Luta clique aqui

Mais além, a cyber-conspiratória série Mr. Robot (2015-16) da USA Network quer detalhar tecnologicamente esse velho sonho de Durden: interfaces GUI em Visual Basic para rastrear IPs, discussões sobre interfaces gráficas Gnome versus KDE, cyber-ataques RUDY e ataques massivos em dDOS contra uma gigantesca corporação chamada E-Corp. 

Sam Esmail, criador da série, parece fazer um mix entre Matrix e Clube da Luta mas sem todo kung fu e violência dos socos de um clube fechado masculino. Tudo através dos olhos de um programador niilista chamado Elliot, patologicamente introvertido e sociopata que quanto mais pretende “salvar o mundo” por meio de uma cyber-revolução mergulha no seu “labirinto interior” enfrentando “kern: fatal error” e “daemons” (demônios internos) que são traduzidos como bugs psíquicos e toda uma série de jargão de programadores.

Em outras palavras: tanto o protagonista como o espectador começam a perder as fronteiras entre delírio químico-psíquico do protagonista e a realidade. Elliot (Rami Malek) começa a quebrar de forma estranha a linha imaginária da “quarta parede” – ele conversa com um interlocutor imaginário que pode ser tanto o seu “daemon”, um amigo imaginário ou o próprio espectador.

Mr. Robot está na segunda temporada. Sam Esmail divide de forma didática a temática de cada uma delas: na primeira temporada, acompanhamos a realização dos sonhos do antigo Projeto Caos de Tyler Durden. E na segunda, o mergulho no inferno íntimo de Elliot e o contra-ataque do império do mal da E-Corp – ou “Evil-Corp” como chama Elliot.

Na primeira temporada assistimos à retomada de uma série de temas de Matrix. E na segunda, as consequências da clivagem esquizofrênica do psiquismo do protagonista, no melhor estilo de Clube da Luta.

A série evoca uma série de temas gnósticos e herméticos, difíceis de serem limitados a uma única postagem. Por isso, vamos primeiro abordar a primeira temporada, dominada por temas Valentinianos (de Valentim, filósofo gnóstico do início da Era Cristã): a descida através do buraco do coelho até a paranoia e a melancolia. Para Valentim, paranoia e melancolia eram estados de consciência ideais para a busca da Verdade, a Gnose.

E na segunda temporada, dominada por temas basilidianos: a busca do estado de suspensão e a gnose através do silenciamento da consciência.

A Primeira Temporada

Elliot Anderson (referência a Neo – Thomas Anderson – de Matrix?) é um engenheiro de segurança de TI que trabalha na AllSafe durante o dia. Insone, durante a noite é um hacker, vigilante e justiceiro: hackeia pedófilos, golpistas e outros pecadores para depois fazer justiça chantageando-os. 

Usando de sua perspicaz engenharia social para descobrir fraquezas pessoais, descobre senhas e fuça na vida de todo mundo. Depois, guarda a vida e os pecados de todo mundo em CDs arquivados no seu “cemitério digital”.

Até que um dia, o principal cliente da AllSafe, a gigantesca E-Corp, sofre um massivo ataque cibernético. Ao analisar o ataque, Elliot determina que é necessário derrubar todos os servidores da empresa para restabelecer os back-ups. Em um desses servidores descobre um arquivo *.txt com uma mensagem solicitando não ser apagado. Algo no seu íntimo faz Elliot obedecer a mensagem.

Na verdade aquele ataque foi um teste para ele: estava sendo recrutado por um líder hacker anarquista do grupo F*Society (“Fuck Society”). O grupo pretende incriminar um executivo da empresa chamado Terry Colb, para convencer o FBI de que o ataque partiu de dentro da corporação.

E-Corp é uma corporação de importância global – um conglomerado de empresas que fabricam computadores, celulares, tabletes e possui um banco e uma linha de crédito aos consumidores. E-Corp domina 70% do crédito global industrial e de consumo. Portanto, um ataque dessa natureza coloca em risco a economia mundial.

Christian Slater faz o líder anarquista Mr. Robot, uma espécie de Morpheus que pretende abrir os olhos de Elliot para a irrealidade do mundo: toda a economia do mundo é virtual e o valor do dinheiro baseado na crença ingênua dos consumidores da existência de algum lastro produtivo na sociedade. Como Mr. Robot afirma, “a mentira é a base da confiança” – sobre a virtualização do dinheiro e da economia clique aqui.

F*Society quer criar o “maior evento de redistribuição de renda da História” – apagar todas as dívidas derrubando todos os servidores e apagando os back-ups. Na verdade, apenas abrir os olhos das pessoas, mostrando que dívidas e dinheiro jamais existiram.

O Viajante e a Meta-paranoia – Atenção: Spoillers à frente

O plot da primeira temporada é essencialmente maniqueísta. Mas não no sentido hollywoodiano (Bad Guys contra Good Guys), mas no sentido mais ontológico original do antigo pensamento do filósofo persa gnóstico Mani: a luta do Bem contra o Mal pertence à própria estrutura do mundo. Acabar com essa luta significa revelar a própria irrealidade do mundo a mentira que inspira a confiança nos serviços da E-Corp. 

Por isso Elliot é niilista e melancólico. Não vê o menor sentido nas convenções sociais como, por exemplo, assistir a um jogo de basquete em um parque público. 

Tal como Neo em Matrix, é um profissional bem sucedido que teria tudo para se dar bem na carreira. Mas decide se isolar e sentir-se atraído por losers do underground de uma casa de diversões em ruínas no parque de Coney Island, os hackers da F*Society. Elliot é o clássico personagem gnóstico do Viajante: como Alice de Carrol, entendiado e melancólico, segue o coelho até a sua toca: a “Wonderland “da casa de diversões abandonada chamada “Funny Society”.

Lá está a sua espera o “Chapeleiro Maluco” Mr. Robot, pronto para abrir seus olhos para a Verdade.

Mas ainda o plot é muito simplista. É necessário uma pitada da paranoia sci fi do escritor gnóstico Philip K. Dick do seu livro O Pagamento – um técnico em engenharia reversa presta serviço secreto a uma corporação. Em troca de uma fortuna em pagamento aceita que sua memória dos anos de serviço prestados seja apagada. Voltando a si, descobre que no envelope não há pagamento algum: apenas uma mensagem cifrada que deixou para si mesmo como pista inicial para a solução de um enigma – sobre o filme O Pagamento inspirado no livro de Philip K. Dick clique aqui.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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  • E a história do nascimento do dinheiro e do seu valor existe

    Está no Logos Babylônico do Heródoto e eu garanto que os que mandam no mundo acreditam nela.

    No post está escrito:

    "Talvez a mesma lógica possa ser aplicada a filmes da estirpe de Matrix, Clube da Luta e de séries como Mr. Robot: banalizar a crítica ontológica radical contra a irrealidade da economia, da política e sobre a própria fragilidade de um sistema que se mantém sobre bases tão frágeis – a confiança e credibilidade baseadas em mentiras.

    Através da ficcionalização, transformar a crítica séria em coisas de nerds arrogantes ou posturas pseudo-radicais."

    Críticas epistemológicas e ontológicas radicais raramente encontram pessoas de bom senso para apreciá-las, que são sempre as que concordam conosco.

    Vivemos em tempos interessantes.

     

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