Imagem: A Escotilha
O preço das páginas em branco
por Felipe A. P. L. Costa
Obras de divulgação científica (artigos, livros etc.) têm um potencial pedagógico dos mais significativos. Nesse sentido, o princípio norteador delas bem poderia ser a ideia de que o texto precisa falar não apenas sobre o que os cientistas estão descobrindo a respeito do mundo, mas também sobre como e por que eles estão fazendo isso.
Infelizmente, não é bem isso o que temos. A maior parte da literatura de divulgação publicada no país não dá ênfase ao como (metodologia) ou ao por que (contexto teórico) do trabalho dos cientistas, preferindo chamar a atenção para descobertas ou invenções tidas como ‘sensacionais’.
Dito isso, cabe esclarecer que o foco deste artigo é um pouco diferente. Ainda que as atenções estejam voltadas para o segmento das obras de divulgação, vamos examinar aqui um problema que envolve toda a indústria editorial: o desperdício de papel durante a produção do objeto livro. Uma das consequências negativas do desperdício é a elevação do preço final de venda. Como pretendo mostrar, esse encarecimento não implica apenas em pequenos ajustes (1-5% do preço final, digamos), podendo representar percentuais de aumento muito mais elevados.
Os grilos canibais
Veja o caso do livro A longa marcha dos grilos canibais (Companhia das Letras, 2010), de Fernando Reinach, biólogo, empresário e colunista do jornal O Estado de S. Paulo. Reproduzindo uma prática relativamente comum, sobretudo no meio jornalístico, o volume reúne pequenos artigos publicados na imprensa.
Visita recente ao sítio da editora [aqui] revelou que o livro de Reinach (preço de venda ao consumidor: R$ 57,90) está fora de catálogo (‘indisponível’), ao menos por enquanto. Eis o que a editora informa a respeito da obra:
Em textos bem-humorados e acessíveis, mas que não abandonam a seriedade da investigação científica, Fernando Reinach faz um passeio pelas mais diferentes áreas da ciência, levando-nos a refletir sobre o papel do homem no planeta.
O ‘passeio’ por ‘diferentes áreas da ciência’ são 118 artigos arranjados em 11 seções, de ‘Ambiente’ e ‘Política’, passando por ‘Sexo’, ‘Comportamento’, ‘Mente’ e mais outras seis. É artigo demais para espaço de menos – o livro tem 399 páginas numeradas, ainda que o número efetivo, como nós veremos a seguir, seja bem inferior a isso. Em média, cada artigo ocupa pouco mais de duas páginas, embora todos (ou quase todos) coubessem em menos de duas.
O meu exemplar de A longa marcha dos grilos canibais é da 3ª reimpressão (2010) e uma rápida folheada inicial me deixou com a impressão de o livro tem muitos ‘espaços vazios’, embora não tenha ilustrações. Um exame mais demorado revelou a origem da minha impressão inicial: das 399 páginas, 20 estão inteiramente em branco, 11 ostentam apenas o nome de cada uma das seções e 111 foram subutilizadas – 35 têm menos de 50% da área útil impressa e 76, menos de 25%.
Mancha e densidade de caracteres
Feitas as conversões (e.g., duas páginas com menos de 50% de área impressa equivaleriam a uma página inteiramente em branco, assim como duas páginas com menos de 25% de área impressa equivaleriam a uma página e meia em branco), descobri que aquelas 111 páginas subutilizadas equivaleriam a 74 páginas inteiramente em branco. Somando este resultado às duas categorias referidas no parágrafo anterior (20 + 11 + 74), teríamos 105 páginas em branco, o equivalente a 26% das páginas do livro!
Trocando em miúdos, tudo o que há em A longa marcha dos grilos canibais seria facilmente acomodado em 294 páginas (= 399 – 105), bastando para isso uma simples redistribuição dos capítulos durante o trabalho de edição. Tal medida implicaria em uma economia significativa no gasto de papel, o que por si só já seria bastante louvável. Ocorre que a redução no número de páginas poderia ser ainda maior. Vejamos.
Fechado, o livro de Reinach mede 14 x 21 cm; assim, descontando a largura das quatro margens (superior e inferior, interna e externa), a área útil ou impressa de cada página (mancha) equivaleria a um retângulo de 10 x 17 cm.
A fonte utilizada (Minion) é bem econômica, além de propiciar uma agradável vizualização. Todavia, a densidade de caracteres (número de caracteres por unidade de área) não passa, salvo melhor juízo, de 13 caracteres/cm2. Este número varia de acordo com o tamanho da fonte e o espaçamento entre as linhas. Quando reduzimos um ou outro, a densidade aumenta; do contrário, se aumentamos a fonte ou afastamos as linhas, a densidade diminui. É necessário, portanto, encontrar um meio termo, levando em conta os custos da produção, mas também a legibilidade do texto – quem poderia ler um livro de uma só página impressa em fontes de tamanho microscópico?
Estabelecendo um contraponto
Para colocar esses 13 caracteres/cm2 em perspectiva, vejamos o caso do livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017), que eu mesmo editei.
Fechado, o livro também mede 14 x 21 cm; todavia, como as margens são mais estreitas, a mancha é maior (11 x 17,5 cm). A fonte é a mesma (Minion), e o tamanho da fonte também, mas o espaçamento entre as linhas é menor, de sorte que a densidade é maior: 16,25 caracteres/cm2 (texto principal) – nas páginas finais (notas, referências etc.), a fonte encolhe e a densidade é ainda maior.
Uma folheada já deixa entrever a presença de ilustrações (figuras e tabelas); enquanto um exame mais cuidadoso revelará ao futuro leitor algo bastante singular: não há páginas em branco – nenhuma. Houve quem percebesse a inovação, como mostra o comentário abaixo (grifo meu):
[S]ó tive tempo de conferir o tal apanhado geral (orelha, contracapa, crédito etc.) e conferir o miolo, rapidamente. Esses cientistas estão num nirvana inatingível para meu entendimento. Mas minha curiosidade de gato me anima à leitura. De qualquer forma, já destaco seu ótimo desempenho com a diagramação. O aproveitamento dos espaços sem interferir na estética nem na leitura (Exemplo: o espaço da dedicatória, o sensacional aproveitamento das páginas 2 e 6). […] É visível sua evolução editorial. Parabéns. – KB (Niteroi RJ), comentário recebido por correio eletrônico, em 21/3/2017.
Quando fala em ‘evolução editorial’, KB está querendo dizer que a edição d’O evolucionista voador ficou melhor que a de dois livros anteriores que eu editei e que ela conheceu. (Em tempo: devo confessar que, vindas de uma escritora tarimbada e bibliófila de primeira, as palavras acima me deixaram envaidecido.)
Coda
Uma comparação final entre os dois livros, levando em conta o número efetivo de páginas (294 vs. 159), o tamanho das manchas (170 vs. 192,5 cm2) e a densidade de caracteress (13 vs. 16,25), revela que A longa marcha dos grilos canibais é uma obra duplamente problemática, pois envolveu um gasto de papel muito superior para acomodar um conteúdo que é comparável ao do livro O evolucionista voador – nos moldes deste último, aquele seria convertido em um volume de 208 páginas, talvez menos.
Qualquer um que esteja disposto a pagar R$ 57,90 por um exemplar do livro de Reinach estará pagando cerca de R$ 15 só pelas páginas em branco! Não sei o motivo de a Companhia das Letras ter cometido tamanho desatino, mas não acredito que o objetivo fosse tão somente ganhar dinheiro vendendo páginas em branco. É aconselhável que a editora tome pé da situação e reimprima a obra em um formato mais inteligente – e, consequentemente, mais econômico. (A propósito, seria o livro em questão apenas um caso extremo ou teríamos outros ‘grilos canibais’ por aí?)
Antes de finalizar, devo registrar o seguinte: (i) a presença de páginas em branco não é o único modo de despercidar papel, é apenas o mais evidente deles; e (ii) a presença de páginas em branco ou de páginas subutilizadas nem sempre é um problema a ser combatido, sobretudo no caso de livros de arte ou livros infantis. A preocupação deste artigo foi chamar a atenção para a subutilização de papel em um tipo de livro no qual os espaços em branco deveriam ser evitados, o que permitiria, entre outras coisas, reduzir (talvez pela metade, ou quase isso, no caso em questão) o preço final de venda.
[Nota: para informações a repeito do livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]
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O tipo de preocupacao de
O tipo de preocupacao de alguem agudamente atento ao uso de espaco. Ver tambem o livro de Frank Loyd Wright sobre o assunto -esqueci nome imediatamente.
Ja eu... Sou tao chato com uso de espaco que ate virgulas me incomodam.
Nem tanto ao mar nem tanto à terra
Livros de assuntos a serem estudados nao devem ter margens estreitas, que impedem comentários e "localizadores" (indicaçao na margem dos tópicos tratados em certos trechos). E linhas muito apertadas tornam a leitura difícil, sobretudo para gente mais velha. Tudo bem contra desperdícios, páginas em branco só com indicaçao de unidade, etc, mas a leitura deve ser confortável, e deve haver espaço p/ manifestaçoes dos leitores nas margens. Mesmo páginas em branco quando um capítulo termina e outro começa nao sao um mal (mas por um motivo nao oficial, rs: permitem a separaçao dos capítulos ao xerocar, o que pode ser ruim para os editores, mas é bom para leitores e professores que querem passar os textos de seus livros para seus alunos)