Os abusos das agências de risco

Coluna Econômica

No dia em que se contar a história desses tempos da esbórnia financeira, capítulo especial será dedicado às agências de rating – de análise de risco.

Tenho a impressão de que nunca, em tempo algum, conferiu-se a instituições tão despreparadas papel tão essencial para o funcionamento do sistema econômico mundial.

O rebaixamento da nota dos títulos públicos dos EUA talvez seja o canto de cisne dessas instituições.

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OproO processo de globalização sempre implicou muitas oportunidades e muitos riscos. Todas as grandes ondas especulativas dependiam do chamado efeito-manada. Entrava-se em determinado mercado, barato, e aguardava-se que o movimento de manada levasse outros investidores para lá. Esse movimento provocava uma valorização dos ativos permitindo a quem chegou antes vender com lucros.

Quando se iniciava o processo de vendas (denominado de “realização de lucros”) havia o efeito-manada inverso, uma corrida que jogava o valor do ativo no chão, até a próxima rodada especulativa.

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As agências de risco cumpriam o papel de sinalizadoras desses movimentos. Para minimizar suas responsabilidades, muitos gestores passaram a definir regras de aplicação baseadas nos “ratings” das agências. Era a maneira mais fácil de acompanhar o efeito-manada e de se eximir da responsabilidade por aplicações mal feitas.

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Na prática, as agências só mostravam eficácia na chamada “profecia auto-realizada” – isto é, quando apontavam o potencial de determinado ativo, provocavam uma corrida para o ativo que acabava se valorizando.

No campo específico das análises fundamentalistas – isto é, baseadas nos fundamentos dos ativos – cometeram erros primários e jamais demonstraram conhecer a economia.

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A economia é fundamentalmente a ciência que trabalha com correlações, com a maneira como os diversos setores se influenciam mutuamente, com a capacidade de entender processos dinâmicos.

Já as agências de análise de risco trabalham com a visão do auditor, do contabilista, que olha apenas a capacidade estática de uma organização – seja uma empresa ou um país – em honrar seus compromissos.

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Há momentos em que a contabilidade é mais adequada que a economia.

Há outros momentos em que a contabilidade é insuficiente para prever desdobramentos.

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Na Argentina de Domingo Cavallo, por exemplo, cada pacote fiscal minava ainda mais não apenas o nível de atividade como a própria capacidade política do governo se manter. Mas as agências acenavam com perspectiva de melhoria do rating.

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No caso dos Estados Unidos, o pacote fiscal duramente aprovado foi interpretado pela unanimidade dos economistas como sinal de mais recessão – e, consequentemente, menor arrecadação fiscal. Para a Standard & Poors o pacote foi insuficiente – mesmo errando nas contas em US$ 2 trilhões.

O Secretário do Tesouro norte-americano Timothy Geithner comentou a “impressionante falta de conhecimento do básico da matemática do orçamento fiscal dos EUA por parte da agência.

Nem isso trouxe humildade à agência, que reconheceu o erro mas manteve o rebaixamento da nota

Cenário 1

Há dois cenários possíveis. O primeiro, de continuidade da crise atual, mas sem pânico. Os Bancos Centrais garantem a compra de títulos públicos, ocorre uma lenta migração de recursos do dólar para outros ativos e não se tomam medidas mais drásticas em relação aos mercados especulativos. Haverá uma redução no crescimento da economia brasileira e uma desvalorização discreta do real, voltando para R$ 1,70.

Cenário 2

O cenário de pânico. Há novos rebaixamentos da dívida norte-americana, seguidos das dívidas de países europeus – e respectivas economias nacionais. Nesse caso, cria-se uma insegurança global com o efeito-manada e a tendência – por paradoxal que seja – será a fuga para o dólar. Aí a desvalorização cambial será mais profunda e a administração das reservas cambiais do BC mais cuidadosa.

As reservas cambiais

O Banco Central em um bom montante de dólares em caixa para momentos de normalidade. Em geral, comparam-se as reservas com compromissos de curto prazo. Mas, lembra o economista Yoshiaki Nakano, o volume de ativos líquidos (que podem ser rapidamente transformados em dólares e sair do país) é imensamente maior. Em caso de corrida, as reservas brasileiras poderiam ser consumidas em dois tempos.

O fator China

Com a economia norte-americana em recessão, o nível de atividade mundial dependerá cada vez mais da economia chinesa. Acontece que o fator dinâmico da China são as exportações. E seus principais compradores estarão em crise. Há um movimento para mudar o fator dinâmico para o mercado interno, mas leva tempo. Portanto o crescimento da China não deverá repetir os índices dos últimos anos.

Endividamento brasileiro

A dívida pública brasileira está sob controle; as dívidas privadas, não. Muitos bancos e empresas aproveitaram o baixo valor do dólar para contrair financiamentos externos. A maioria está “hedgeada” (isto é, supostamente protegida contra desvalorizações). Mas essa proteção depende do grau de desvalorização cambial. Se for muito acentuado, provavelmente os contratos não garantirão o prejuízo.

O fator crise

A grande vulnerabilidade brasileira está no real apreciado e na balança comercial – sustentada por níveis irreais de preços de commodities. O governo sabe disso há tempos. Mas falta coragem política para se antecipar aos problemas e abrir mão dos atuais níveis de crescimento e emprego – ainda que se saiba que serão comprometidos assim que a crise ampliar. Apenas a eclosão da crise levará o governo a tomar as medidas necessárias.

Luis Nassif

Luis Nassif

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