O planejamento elétrico 20 anos depois da reestruturação

Do Blog Infopetro

Por Miguel Vazquez

Tanto no Brasil quanto internacionalmente, uma das questões que normalmente tende a se driblar no processo de reestruturação é como coordenar a tomada de decisões de longo prazo. No começo dos anos 1980, os economistas do MIT tinham um plano perfeito para introduzir competência nos sistemas elétricos. Joskow e Schmalensee publicaram o “Markets for Power” [1], pilar de muitos processos futuros de reestruturação, em 1983. Os engenheiros do MIT, por sua vez, se ocuparam de que a realidade não estragasse um bom modelo: Schwepee e o seu grupo desenvolveram a metodologia de precificação de eletricidade [2]. Eles deram uma solução para as dificuldades associadas aos mercados de curto prazo na presença de redes elétricas.

Nessa abordagem, se supõe que o planejamento é coordenado automaticamente desde que o curto prazo funcione corretamente.  Com a precificação de Schwepee, em princípio, tudo funciona corretamente, tudo fecha. É daí que surge o esquema que ainda hoje sobrevive em muitas das discussões do setor elétrico: o transporte de eletricidade é um negócio regulado, e a regulação deve conseguir criar uma commodity “eletricidade” que seja trocada facilmente por geradores e consumidores em regime de mercado de curto prazo. Desse modo, o longo prazo será resolvido por um bom mecanismo de curto prazo.

Contudo, nenhum sistema na atualidade responde a essa lógica de maneira pura, e há fracassos famosos de sistemas que confiaram nessa fórmula. Vamos mostrar, historicamente, como de forma progressiva os sistemas de todo o mundo foram introduzindo mecanismos complementares ao mercado para lidar com o problema do curto-longo prazo. E vamos mostrar como, em grande parte do mundo, a ideia de introduzir algum tipo de contratação de longo prazo que permita ao mercado escolher a matriz energética está sendo abandonada. Depois desse percurso histórico, veremos como o Brasil encaixa na visão.

1982

Ainda com o modelo de Boston sendo analisado, o Chile implantou o primeiro mercado elétrico. O processo de oferta estava fortemente monitorado e o equilíbrio do mercado era alcançado através de um modelo de despacho plurianual. A ênfase era a tomada de decisões de investimento (longo prazo) em um entorno liberalizado e o preço era o custo marginal (de curto prazo). Mas no processo de implantar o mercado notaram um problema que não havia sido levado em conta: a central marginal não recuperava os custos de investimento. Adicionaram então, sem maiores justificativas, o que seria o primeiro pagamento por capacidade da história.

1992

A popularização das liberalizações elétricas começou um pouco mais tarde, nos anos 1990, com Grã Bretanha, Argentina e o pool americano PJM (Pennsylvania, New Jersei e Maryland). A discussão, seguindo de alguma forma a tradição do MIT, foi que as decisões de desenho relevantes estavam associadas com o curto prazo, e que se este era desenhado corretamente, o planejamento ótimo seria um resultado desse desenho. Verdade que o modelo teórico não se encaixava perfeitamente na realidade, mas acreditou-se que só se precisava adicionar um detalhe no desenho e tudo ficava pronto.

Nesse contexto, a Grã Bretanha não usou pagamentos por capacidade, mas “capacity adders” (incrementos dos preços da energia para compensar as centrais disponíveis, mas não despachadas). Na Argentina se justificou pela primeira vez o uso de pagamentos por capacidade. Eram custos associados a uma restrição do regulador: ele prefere sobre-capacidade a capacidade ótima [3]. Foi o primeiro argumento de segurança de suprimento. No PJM, por sua vez, se desenvolveu o primeiro mercado de capacidade. Ele era uma extensão, em realidade, de restrições sobre a margem de reserva das utilities públicas que existiam antes da liberalização. Nessa época, as plantas de geração a gás em ciclo combinado (CCGTs) eram uma tecnologia nova e barata, portanto o problema da decisão de investimento não se colocava: a escolha era relativamente clara e óbvia.

Ao longo doa anos 1990, vários sistemas seguem o processo de liberalização, e seguindo a visão da época, se focam na troca de curto prazo e deixam que os agentes coordenem o longo prazo. Reestruturações da época vão além e ignoram qualquer mecanismo adicional de planejamento, e confiam na troca spot para ajustar o planejamento do investimento. O tema principal era então o poder de mercado, visto que o sistema da Grã Bretanha colapsou pelo exercício de poder de mercado com os “capacity adders”, se concluiu, as regras da troca de curto prazo eram relevantes, e deviam ser relativamente simples. Escandinávia (NordPool), Austrália e a Califórnia são experiências da época. Caracterizam-se essencialmente por uma contestação ao sistema de preços nodais do PJM. A visão deles era que muitos preços têm o risco de manipulação, como mostrou o caso da Grã Bretanha.

1998

Espanha liberaliza e não segue a Grã Bretanha e sim a Argentina: implanta pagamentos por capacidade. Itália segue a Espanha e implanta pagamentos por capacidade. Na Colômbia, durante o processo de desenho do futuro mercado elétrico, são propostas asreliability options [6], com os mesmos princípios das “call options” implantadas no Brasil: são mecanismos baseados na obrigação para os agentes de contratar energia no longo prazo. Aparece pela primeira vez uma justificativa para o problema do planejamento baseada nas dificuldades de coordenação intertemporal. No entanto, a Colômbia escolhe pagamentos por confiabilidade: a capacidade não é a medida de segurança de suprimento; a medida é a energia. Detectam-se problemas e se propõe uma reforma que tardaria em chegar.

2000’s

Contrário ao plano inicial, nenhum dos sistemas do “só-preço-spot” manteve o esquema por muito tempo: NordPool confiou na compra de centrais de reserva controladas pelo operador da rede (intervindo no preço diretamente). A Califórnia se manteve sem mecanismo de longo prazo e colapsou. Como consequência quase todos os mercados americanos incluíram um mercado de capacidade, incluindo a própria Califórnia. Ademais, em 2002 começa a acabar o dash-for-gas e todos os sistemas térmicos começam a se perguntar se há suficientes incentivos para o investimento (será que o planejamento é dado pela troca de curto prazo?). NordPool em 2002 abandona o plano de “só-preço-spot” e implanta mercados de reservas de longo prazo. Aparece a justificativa pela primeira vez de que o problema do planejamento baseado nos mercados spot estava associado com a falta de liquidez nos mercados de reservas. Grã Bretanha segue ao NordPool, exceto que é o operador do sistema quem compra as reservas. Mais tarde começam a se popularizar os esquemas baseados na contratação regulada de longo prazo, New England em 2006 ou Colômbia em 2007. Alternativamente, aparece a justificativa do “missing money”, criada por Cramton e Stoft [4] e depois popularizada por Joskow [5]. (…) Continua no Blog Infopetro

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

View Comments

  • Porque debate antes do
    Porque debate antes do planejamento.?
    Especialistas servem para que?

    Ou deixe como está, a base será ampliada por investimentos estatais, nucleares sem debate, e o mercado fica comendo pela beirada.

    Está tudo ótimo. Só precisamos de nucleares e aí poderemos parar.de falar sobre este assunto a cada 4 ou 5 anos.

Recent Posts

Comunicação no RS: o monopólio que gera o caos, por Afonso Lima

Com o agro militante para tomar o poder e mudar leis, a mídia corporativa, um…

10 horas ago

RS: Por que a paz não interessa ao bolsonarismo, por Flavio Lucio Vieira

Mesmo diante do ineditismo destrutivo e abrangente da enchente, a extrema-direita bolsonarista se recusa a…

11 horas ago

Copom: corte menor não surpreende mercado, mas indústria critica

Banco Central reduziu ritmo de corte dos juros em 0,25 ponto percentual; confira repercussão entre…

11 horas ago

Israel ordena que residentes do centro de Rafah evacuem; ataque se aproxima

Milhares de pessoas enfrentam deslocamento enquanto instruções militares sugerem um provável ataque ao centro da…

12 horas ago

Governo pede ajuda das plataformas de redes sociais para conter as fake news

As plataformas receberam a minuta de um protocolo de intenções com sugestões para aprimoramento dos…

13 horas ago

As invisíveis (3), por Walnice Nogueira Galvão

Menino escreve sobre menino e menina sobre menina? O mundo dos homens só pode ser…

15 horas ago