O risco de ‘infantilizar’ a gestão pública, por Bruno Dantas

Excessos no controle impedem administradores de tomar decisões inovadoras ou, simplesmente, deixar de decidir esperando aval de TCU
Jornal GGN – A Constituição Federal de 1988 fortaleceu mecanismos importantes para controlar a gestão pública como o MP e o TCU, mas ao longo de três décadas especialistas identificam que o voluntarismo excessivo desses órgãos têm emperrado decisões na administração pública. No artigo a seguir, publicado em O Globo, o ministro do TCU, Bruno Dantas apresenta o perigo de hipertrofia dos órgãos de controles a ponto de “gerar a infantilização da gestão pública”, reconhecendo que para controlar ações públicas é preciso “autocontenção e noção de consequencialismo”, ou seja, compreender os impactos econômicos das decisões estatais no sentido de até que ponto favorecem ou não o bem-estar social.
Agências reguladoras e gestores públicos em geral têm evitado tomar decisões inovadoras por receio de terem atos questionados. Ou pior: deixam de decidir à espera de aval prévio do TCU
O controle da administração pública passou por profunda transformação nos últimos 30 anos, impulsionado pela configuração institucional da Constituição de 88, que em boa hora fortaleceu órgãos como o MP e o TCU. Deve haver, porém, equilíbrio entre gestão e seu controle, sob pena de criarmos no país um “apagão decisório”, despertando nos gestores temor semelhante ao de crianças inseguras educadas por pais opressores.
A Emenda Constitucional 19 lançou bases para uma administração gerencial, mitigando o modelo burocrático, de matriz weberiana, instituído em 1988. Aos novos instrumentos que propugnam uma gestão voltada para resultados, deve corresponder um controle de mesma índole.
A busca da eficiência, todavia, não pode significar o afrouxamento do controle de legalidade e o combate à improbidade deve prosseguir com rigor. A transição de modelos, contudo, tem sido tormentosa tanto para o gestor, quanto para o controlador. Num quadro pavoroso de corrupção, o risco que se corre é o da generalização indevida, e é preciso responsabilidade para resistir a esse impulso.
O controle de legalidade possui contornos bem definidos, já o de eficiência é menos preciso e mais subjetivo. Exatamente por isso a hipertrofia e o voluntarismo devem ser repelidos nos órgãos de controle, pois não possuem legitimação democrática para formular políticas públicas. O controlador da administração gerencial deve agir com autocontenção e noção de consequencialismo.
Richard Posner caracteriza o consequencialismo pela necessidade de se observar os impactos econômicos das decisões estatais, tendo em vista que a maximização de riqueza incrementa o bem-estar das pessoas, e esse é o objetivo de qualquer nação. É comum decisões bem-intencionadas causarem resultados desastrosos. Segundo Posner, decisões assim são intrinsecamente erradas.
Se, do ponto de vista administrativo, uma política pública que consome dezenas ou centenas de bilhões de reais do orçamento e não resulta em benefícios para a população é tão condenável quanto uma licitação fraudada ou um contrato superfaturado, que ferramentas órgãos de controle têm para medir e controlar a eficiência dessa ação de governo?
O TCU tem se esmerado em realizar auditorias operacionais que identificam fragilidades, riscos e oportunidades de aperfeiçoamento na gestão governamental. Justamente por navegar nos mares da eficiência, e não no controle estrito da legalidade, é preciso resistir à tentação de substituir o gestor público nas escolhas que cabem ao Poder Executivo, e é essa a autocontenção que defendo.
É comum que especialistas — como são os auditores — tenham concepções e fórmulas até mais inteligentes para os problemas identificados, mas o controle de eficiência deve mirar processos de tomada de decisão e a razoabilidade dos critérios adotados, sem pretensões quixotescas ou salvacionistas.
A hipertrofia do controle gera a infantilização da gestão pública. Agências reguladoras e gestores públicos em geral têm evitado tomar decisões inovadoras por receio de terem atos questionados. Ou pior: deixam de decidir questões simples à espera de aval prévio do TCU. Para remediar isso, é preciso introduzir uma dose de consequencialismo.
Em correspondência recente, fui relembrado pelo Prof. Adilson Dallari (PUC-SP) daquilo que o jurista argentino Roberto Dromi apelidou de código do fracasso na administração pública: “Art. 1º: não pode; Art. 2º: em caso de dúvida, abstenha-se; Art. 3º: se é urgente, espere; Art. 4º: sempre é mais prudente não fazer nada”. O Brasil precisa revogar esse código urgentemente.
Bruno Dantas é ministro do TCU, pós-doutor em Direito (Uerj), professor do mestrado da UNINOVE e do IDP, e Visiting Research Fellow na Cardozo School of Law (Nova York) e no Max Planck Institute Luxembourg for Regulatory Procedural Law
Redação

Redação

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  • A necessidade de apoio das auditorias operacionais.
    Por regra, o que acontece em muitos TCs, a auditoria operacional ainda dá seus primeiros passos.
    Talvez a realidade do artigo valha para algumas cortes mais avançadas, em que aparar esse novo instrumento seja necessário.
    Entretanto, auditorias operacionais pujantes e patriarcais, ou seja, que se excedem não são comuns, o que temos é o inverso, em muitos TCs elas engatinham, algumas na UTI neonatal.
    Em vários aprimoramentos e debates que participei, alguns inclusive promovidos pelo TCU, o foco principal da operacional era parceria com o gestor com vistas a melhoria do serviço entregue pelo jurisdicionado, e o resultado desse diálogo (em resumo bem leigo) seria uma coleção de procedimentos que o jurisdicionado não soube explicar porque faz ou porque deixa de fazer.
    Se vai adotar ou não fica a critério do gestor, no máximo é exigida a razão da não adoção.
    Os gestores públicos que trabalhei nesse diapasão sempre se mostraram muito empolgados com essa ferramenta (bem mais que auditoria de conformidade), pois viam mais um instrumento de melhoria de sua gestão e de argumento contra pressões políticas pouco republicanas.
    Infelizmente percebo nesse artigo um risco de efeito colateral, desestimulando uma importante ferramenta do controle externo do erário, uma ferramenta ainda tão incipiente nos nossos TCs.

  • Sr.Ministro Bruno Dantas, parabéns pela publicação. Atuo em parcerias com a Prefeitura Municipal aqui em SP, e tudo o que foi compartilhado aqui, é a mais pura realidade! Da forma que está, não podemos evoluir, pois há riscos de glosa, perda e até responsabilidade por algo que seja considerado fora dos padrões dos órgãos de controle. Infelizmente, o paciente, nunca está em primeiro lugar…e com isso, a população sofre e por não terem noção de todas as burocracias, perdem a oportunidade de terem serviços de qualidade e como já comprovado, menor custo.
    Parabéns e obrigado pelo texto.

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