Segundo mandato: perspectivas, por Flávio Patrício Doro

Aí está. O processo eleitoral terminou, e Dilma foi reeleita. Se até agora não foram flores, a parte mais difícil vem agora.

Assim como foi em 2010, emerge das urnas uma situação inédita. Em 2010 a novidade era o perfil da nova presidente, eminentemente técnico e sem muito traquejo político. A ascensão ao poder de alguém assim, em um regime democrático, seria impossível em circunstâncias normais. O fator excepcional, claro, foi Lula.

Para o bem e para o mal, as características de Dilma imprimiram uma marca única ao seu primeiro mandato.

O que há de novo em 2014 é de outra natureza. Trata-se da combinação de dois fatores que, contando-se a partir de 1946, somente se haviam apresentado de forma isolada: uma eleição apertada e uma reeleição.
Na única eleição presidencial que tínhamos tido com tão pequena diferença relativa de votos desde o pós-guerra, que foi a de 1989, Collor era novato no Planalto, assim como seu grupo político. Além disso o país atravessava uma crise hiperinflacionária que aparentemente ninguém sabia resolver, e isso galvanizava todas as atenções. O que aconteceu após a eleição? Toda a expectativa se concentrou nas medidas que o novo governo tomaria. Derrotado, o PT de Lula bem que tentou manter-se ativo, criando um autointitulado governo paralelo, mas não conseguiu interferir de fato na agenda política do país. Os verdadeiros adversários de Collor eram a situação econômica e seu próprio estilo de governo. A parcela do eleitorado e da sociedade civil que havia apoiado Lula não exerceu pressão sobre o governo – antes, deu-lhe um crédito para tomar as medidas que julgasse necessárias para estabilizar a economia. (Aliás, esse fator de novidade também ajudou Dilma em 2010. Uma parcela dos que não gostavam de Lula estava disposta a esperar para ver.)

A situação agora é completamente diferente. Ao contrário de quatro anos atrás, todo o país conhece Dilma. Os segmentos politizados da sociedade – bem mais amplos agora do que há apenas alguns anos, devido à expansão da escolaridade e da informação – têm sua posição e sua expectativa a respeito deste novo mandato. A grande maioria, ou está claramente a favor ou está decididamente contra. Poucos se colocam de forma moderada.

Como se chegou a essa situação? Além da prática, também a retórica do PT, reminiscente da doutrina socialista que vê na luta de classes o motor da História, embora muito bem sucedida em seu propósito de ganhar a confiança da maioria menos favorecida, gradativamente provocou uma reação contrária em setores da classe média que já eram refratários a essa visão, reação essa que parte da imprensa tratou de estimular. Esse processo tornou explícitas as diferenças de opinião que até então conviviam tranquilamente nas sombras; essas diferenças se exacerbaram à medida que as notícias de corrupção envolvendo integrantes e aliados próximos do governo federal foram sendo propagadas. Também houve setores significativos que, anteriormente simpáticos ao PT, se sentiram traídos pelas práticas adotadas pelo partido uma vez instalado no poder.

Como resultado, formaram-se visões absolutamente antagônicas, cristalizadas e inconciliáveis. O lado A acusa o lado B de posar de benfeitor dos pobres enquanto se locupleta com nossos impostos. O lado B acusa o lado A de ser preconceituoso e não suportar ver os pobres terem acesso aos mesmos bens que eles estavam acostumados a deter com exclusividade. Ambos se acusam de incompetência administrativa e corrupção. E há os que não toleram nem A nem B e acham tudo farinha do mesmo saco. O espaço para diálogo é nulo. A confiança foi quebrada. Acabou-se a cordialidade do brasileiro. Nossa forma de discutir política adquiriu uma veemência portenha, que no nosso caso (não sei se no deles) é absolutamente estéril.

Qual o efeito prático disso para o mandato que se inicia? A parcela derrotada não vai querer colaborar com “o inimigo”. Vai criar todas as dificuldades possíveis – no mais benigno dos casos, para provar que seu ponto de vista era correto; e, no mais drástico, para gerar um movimento gigantesco que poderia levar o governo a renunciar. Dito de outra forma: Dilma iniciará seu mandato sob a pressão mais intensa que um presidente teve de suportar desde os tempos de Sarney e Collor. Ela terá de compreender a situação e apontar novas direções, e rápido. Seu segundo mandato não poderá ser a continuação do primeiro. Terá de ser diferente. É sua única chance.

Quanto à fratura que se formou na sociedade, somente os partidos políticos têm a capacidade de curá-la. O grande problema é que foi justamente a aposta nesse antagonismo, pela via da exploração dos defeitos do adversário, que se mostrou amplamente eficaz na campanha política que se encerrou. Estigmatizar o opositor dá certo. Conclusão: estamos correndo o risco de que esta situação perdure por muito tempo.

Sou da opinião de que todo partido que se preze deve manter um centro de estudos, pesquisa, formação política e formulação de políticas públicas para gerar novos quadros, ideias e propostas, e que todo cidadão interessado possa frequentar. Isso poderia contribuir a médio prazo para mudar a ênfase da discussão política e superar o impasse em que ela mergulhou. Além, claro, de ter agentes políticos e gestores públicos mais qualificados.

Redação

Redação

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  • Só peço que, PELO AMOR DE

    Só peço que, PELO AMOR DE DEUS, trabalhem com todas as forças para a regulamentação da mídia no próximo mandato. Podem até não conseguir, justamente por causa da pressão dessa mesma mídia no Congresso, mas pelo menos eu quero que o governo lute por isso.

    Se a mídia vencer as eleições em 2018, pelo menos eu quero que o PT perca lutando. Chega de controle remoto.

  • Parece o mesmo texto publicado depois das manifestações...

    Texto similar mas em período diferente, pouca coisa vai mudar e a pressão vai continuar branda.

    Quem poderia provocar as mudanças (Congresso Federal) não o fará.

    • Bem observado

      Muito bem colocado.

      Contudo, assinalo o seguinte:

      a) Em resposta às manifestações o governo, sim, sentiu a pressão - e deu uma resposta concreta. Não convenceu a todos, mas foi efetiva.

      b) E agora a questão mais premente é fazer a economia reagir, e isso requer algum ajuste de rumos. De acordo com nota no Painel da Folha de SP de hoje, Mercadante sinalizou nessa direção.

  • Caro Nassif e demais
    Se a

    Caro Nassif e demais

    Se a Dilma for a qualquer programa da grande mídia, estarei entre os revoltosos, entrevistas dela e de seu ministério somente com os blogueiros sujos.

    Estes a alimentaram, lutaram, aguentaram muitas porradas.

    Blogues sujos como novo meio de comunicação do PT, já.

    Qualquer insinuação da grande mídia contra o PT, o PT tem bastante advogados, pau neles, multas pesadas e desmentidos urgentes.

    Se quiserem ser mídia, que aprendam o que é ser repórter.

    Luciana Genro vira criança perto do PT que tem que se levantar após esta eleição.

     

    Saudações

  • "Sou da opinião de que todo

    "Sou da opinião de que todo partido que se preze deve manter um centro de estudos, pesquisa, formação política e formulação de políticas públicas para gerar novos quadros, ideias e propostas, e que todo cidadão interessado possa frequentar". O PT precisa focar nessa direção, 2018 já está às portas, agora é momento de ampliar o investimento em formação política. O que vimos nesta eleição foi estarrecedor, nossa imprensa golpista, famoso pig, teve sucesso indiscutível nesse quesito. Nosso partido não pode relevar a segundo plano tão importante questão.

    • A proposta eh ironica porque

      A proposta eh ironica porque mesmo sem esse centro de estudo e formacao de quadros, o PT manteve monopolio de todas as ideias sociais e estruturais do Brasil.

      O que os tucanos apresentaram de ideias nos ultimos 4 anos mesmo?  Tirar o PT do poder e o que mais?

  • "Só peço que, PELO AMOR DE

    "Só peço que, PELO AMOR DE DEUS, trabalhem com todas as forças para a regulamentação da mídia no próximo mandato. Podem até não conseguir, justamente por causa da pressão dessa mesma mídia no Congresso, mas pelo menos eu quero que o governo lute por isso":

    NENHUMA regulamentacao da media brasileira vai passar se o dinheiro estatal nao for cortado a zero.

    A zero, eu disse.

  • Flávio Patrício Doro escreve

    Flávio Patrício Doro escreve como se não existissem outras instituições no Brasil capazes de promover a necessário mudança no sentido de romper com essa tentativa de divisão entre A e B que voltou à tona nessas eleições.

    É negativo ler esse tipo de artigo nesse momento quando a gente precisa justamente fazer um contra-ponto ao samba de uma nota só da mídia e incluir outros atores no cenário nacional para ajudar a entender o que precisamos fazer para fortalecer o país e não o contrário.

    A mídia passa a impressão que o presidente da República pode fazer tudo. De forma proposital esconde a importância do Congresso Nacional e do STF e suas responsabilidades. Infelizmente, esse artigo só reforça essa situação.

     

    • Responsabilidade dos partidos

      No penúltimo parágrafo coloquei a responsabilidade nos partidos políticos, o que evidentemente inclui o Congresso Nacional. Não vejo uma solução que não passe por eles. Mas a questão está aberta.

  • Sou de opinião que o Governo

    Sou de opinião que o Governo Federal deve deixar São Paulo à  mingua. Se eles são tão bons, que se virem sozinhos. A começar agora, com o problema da água. Que se danem!

    • Provocador infiltrado aqui? Se nao é, parece

      Vá semear ódio entre a sua família, tá? É só o que faltava isso, ainda mais se fazendo passar por apoiador do PT. Chega de bairrismos tolos, o Brasil é um só. 

  • Ninguém leu o que o sujeito escreveu

         Tirando a bobagem da história do Darf, que é uma ilegalidade, pelo simples motivo de que nenhum de nós pode ser obrigado a mostrar em público qualquer documento fiscal, o texto é excelente.

         As pessoas aqui sem nenhuma capacidade de análise não entenderam o que aconteceu ontem, continuam achando que o problema foi a Mídia, e o governo DIlma não teve absolutamente nenhum problema. Brincava ontem com um garçom conhecido, eleitor da Dilma, de que eu desafiava qualquer petista a escrever um texto de cinco páginas, times new roman 13, criticando o Aécio em menos tempo do que eu. Na realidade, ontem só havia uma escolha possível pior que o Aécio, e ela ganhou. Não estou orgulhoso do meu voto, mas aguardei até a manhã de domingo por alguma mensagem dela que indicasse mudança ou um certo reconhecimento de ligeiros equívocos no primeiro governo. Nem de longe se viu isso.

         O garçom falou que o desemprego era recorde de baixa. Como posso estar na pele de alguém que mora longe e sofre problemas que a maioria de nós aqui no blog nem pode sonhar? Não afirmo que o bolsa família é compra de votos, pois se for assim, financiamento do Bndes e aumento de funcionário público de eleite também o seriam.

         A questão é que a condução da política econômica foi um monumental fracasso por qualquer ângulo que se enxergue.

         Não existem cinquenta milhões de canalhas e idiotas no Brasil, como tantos aqui no blog gostam de afirmar, a agressão da militância do PT em rede nacional ontem foi desnecessária e de baixo nível, reduziu o governo ao PT, que é exatamente o tamanho que ele tem agora. Imaginem o impacto dela dando uma bronca na militância ao criticar o Aécio e a Mídia, seria uma forma de reconciliação. A bronca dela com a Veja tem que ser resolvida na Justiça, não vandalizando o patrimônio da Editora Abril. Não se viu isso de forma nenhuma. Falar em plebiscito agora é totalmente patético, ela tem que anunciar imediatamente quem substituirá o patético Mantega.

         Ridícula a proposta do Aécio de reconciliação, o projeto da Dilma ganhou, os méritos e as responsabilidades serão todos dela e de sua Equipe. Da minha parte, o decepcionante discurso (que de bom só tinha a excepcional mulher do Temer) só me tranquilizou em relação à atitude correta que tive em votar na oposição.

         Mas ela que não se esqueça do garçom, ele irá cobrar a conversa que teve comigo, e em 2018 a gente conversa...

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