No naufrágio jurídico, quem os tubarões comerão primeiro?, por Lênio Luiz Streck

Foto: Fellipe Sampaio/STF

Do Conjur

por Lênio Luiz Streck

Subtema ou dizendo-de-outro modo: Tubarões estudam realismo jurídico e devoram os jurista.

Escrevi há dias sobre o perigo de os professores de direito agirem como torcedores. Não só os professores. Parcela considerável da comunidade jurídica age assim. Alertei para o fato de que esquecemos de nosso objeto de estudo e trabalho: o Direito. Transformamos as Faculdades em cursos para apreender truques de teoria política do poder (aliás, uma péssima teoria política do poder). Sem querer e/ou sem saber, fazem o jogo de um realismo retrô, em que o relativismo é a cereja do bolo.

Hoje em dia precisamos pedir desculpas para falar de Direito. O professor chega na sala de aula e fala sobre tudo (e sobretudo) …a partir de sua opinião pessoal. Como se os alunos pagassem para ouvir o que professor (ou o juiz, o membro do MP) pensam pessoalmente sobre o Direito (ou sobre a sociedade). Qual é a diferença de um juiz que decide conforme “seu posicionamento pessoal” e o que o professor faz em sala de aula? Ao que consta, não se vai ao judiciário pedir a opinião pessoal do magistrado. E nem do professor na sala de aula. Antes de tudo, há uma coisa chamada “Direito” (peço desculpas, de novo, por falar nessa coisa démodé, a Constituição).

Por exemplo: de que adianta falar mal da reforma trabalhista se não se discute o modo como são feitas as OJs e as Súmulas pelo TST? Ou o protagonismo judicial ínsito à Justiça laboral? Em vez de malhar (ou elogiar) a reforma previdenciária, não seria bom fazer um aprofundado estudo jurídico-constitucional a respeito? Ou essa discussão é meramente política? Em vez de elogiar (ou criticar) o STF acerca do “caso Bruno”, por que o professor não explica (ou pede ampla pesquisa) acerca do HC 126292, sua origem (comarca de Itapecerica da Serra), já aproveita para explicar o que distinguishing, fala do artigo 926 do CPC que não foi obedecido? Ah: e quando for criticar o tal “princípio” (sic) da verdade real, o professor pode fazer duas coisas: primeiro, não somente fazer um “carnaval” em cima disso; precisa explicar tim-tim por tim-tim, uma vez que 90% dos críticos da verdade real sequer sabem do que estão falando; segundo, pegar um caso concreto baseado na “busca da verdade real” e mostrar como no lugar da VR poderia ter usado qualquer coisa…que chegaria na mesma conclusão, porque a VR é uma katchanga real. E assim por diante. Lembrando sempre que o professor está lecionando…Direito. Ou não está lecionando direito o Direito.

Por isso, precisamos de critérios. Não dá para um mesmo Tribunal livrar um sujeito acusado de corrupção de milhões e manter preso uma pessoa que furtou pedaços de queijo e peito de frango; não dá para depender, em Habeas Corpus, do poder discricionário do Judiciário (que é um não-critério); ora, temos já critérios que definem o resultado do carnaval em 0,01 e ainda não temos critérios para conhecer um HC – aliás, se um HC pode ser impetrado pela própria pessoa e sua origem é “traga-me o corpo”, como se pode não conhecer do remédio (chamado antigamente de “heroico”)? Qual é o critério para definir o conhecimento e deferimento de embargos de declaração? Por que quem impetra uma ação nunca sabe o que vai acontecer? Critérios. Critérios. Onde estão?

Talvez com a historinha que contarei a seguir seja possível passar de forma mais simples o que tento dizer de há muito. É de Luis Fernando Veríssimo. Divido-a com vocês (com pequenas adaptações). A crônica é “Critérios”. Vamos a ela. Eu gostaria de tê-la escrito.

Os náufragos de um transatlântico, dentro de um barco salva-vidas perdido em alto-mar, tinham comido as últimas bolachas dos pacotinhos e contemplavam a antropofagia como único meio de sobrevivência.
— Mulheres primeiro — propôs um cavalheiro.
A proposta foi rebatida com veemência pelas mulheres. Onde se viu, as mulheres? Machista. Safado.

De todo modo, estava posta a questão fulcral: qual critério usar para decidir quem seria comido primeiro para que os outros não morressem de fome?
— Primeiro os mais velhos — sugeriu um jovem.
Os mais velhos imediatamente se reuniram num protesto. Falta de respeito!
— É mesmo — disse um — somos difíceis de mastigar.
— Por que não os mais jovens, sempre tão dispostos aos gestos nobres?
— Somos, teoricamente, os que têm mais tempo para viver — disse um jovem. E vocês precisarão da nossa força nos remos e dos nossos olhos para avistar a terra.
— Então os mais gordos e apetitosos, sugeriu o jovem.
— Injustiça! — gritou um gordo. — Temos mais calorias acumuladas e, portanto, mais probabilidade de sobreviver de forma natural do que os outros.
— Então comamos os mais magros.
— Nem pensem nisso — disse um magro, em nome dos demais. Afinal, somos pouco nutritivos.
— Por que não comemos os religiosos, gritou outro.
— Negativo. Não esqueçam que só nós temos um canal aberto para lá — disse um pastor, apontando para o alto — e que pode se tornar vital, se nada mais der certo.
Era um dilema.
É preciso dizer que esta discussão se dava num canto do barco salva-vidas, ocupado pelo pequeno grupo de passageiros de primeira classe do transatlântico, sob os olhares dos passageiros da patuleia, apertada na segunda e terceira classes, isto é, o resto da embarcação e não diziam nada. Até que um deles perdeu a paciência e, já que a fome era grande, inquiriu:
— Cumé é que? Cadê a boia (na verdade, queria dizer “comida”).
Recebeu olhares de censura da primeira classe. Poxa, o patuleu não sabe nem falar o português. Mas como estavam todos, literalmente, no mesmo barco, também recebeu uma explicação.
— Estamos indecisos sobre que critério utilizar.
— Pois eu tenho um critério — disse o patuleu.
— Qual é?
— Vamos comer primeiro os indecisos.
Esta proposta causou um rebuliço na primeira classe acuada. Um dos seus teóricos levantou-se e pediu:
— Não vamos ideologizar a questão, pessoal!
Em seguida levantou-se um ajudante de maquinista e pediu calma. Queria falar.
— Náufragas e náufragos — começou — Neste barco só existe uma divisão real, e é a única que conta quando a situação chega a este ponto. Não é entre velhos e jovens, gordos e magros, poetas e atletas, crentes e ateus… É entre minoria e maioria.
E, apontando para a primeira classe, gritou:
— Vamos comer a minoria!
Novo rebuliço. Protestos. Revanchismo, não, gritavam os membros da primeira classe!
Mas a maioria avançou sobre a minoria. A primeira classe não era primeira em tudo?
Pois seria a primeira a ser devorada.
Entretanto, restava um problema. Não podiam comer toda a primeira classe, indiscriminadamente. Ainda precisava haver critérios. Foi quando se lembraram de chamar o Natalino. O chefe da cozinha do transatlântico. E o Natalino pôs-se a examinar as provisões, apertando uma perna aqui, uma costela ali, com a empáfia de quem sabia que era o único indispensável a bordo.

O fim desta pequena história admonitória é que, com toda agitação, o barco salva-vidas virou e todos, sem distinção de classes, foram devorados pelos tubarões. Que como se sabe, não têm nenhum critério.

Conclusão:

Por isso, a aplicação do Direito precisa de critérios. Aplicados sempre de forma equânime (por e com fairness). Não pode ser feita na base do “o clamor público exige”, “entre a lei e minha consciência, fico com a última”, “em nome da verdade real”, “julgar é um ato de fé”, “prova é o nome dado a uma crença” (sobre isso farei uma Coluna!), “a sociedade está pedindo mais punição”, “em nome dos fins, posso usar qualquer meio”, “é melhor condenar alguém do que ninguém” e assim por diante.

A democracia precisa de critérios. Antes que sejamos todos devorados pelos tubarões. Se é que já não estão às nossas portas. Na verdade, já estão.

MORAL DA HISTÓRIA: Tubarões não tem critérios. Tubarões não sabem nada de Direito. Tubarões cuidam apenas de seu apetite. Atendem apenas aos seus desejos. Quem cuida do Direito não deve e não pode se comportar como os tubarões. O Direito só funciona mediante critérios.

METAFORICAMENTE: Preocupado com o apetite dos tubarões e com sua irracionalidade, todas as semanas venho aqui para importuná-los e avisar que precisamos de critérios. Que o Direito é que serve para filtrar a moral e a política, e não o contrário.

Sei que é uma chatice. Mas é que conheço tubarões…. Estudo-os há anos. Especializei-me em “epistemologia do Negaprion brevirostris”. Descobri que os tubarões (principalmente os grandões, negaprions), se fossem juristas, seriam adeptos do realismo retrô. Realistas-retrô também não têm critérios. Ah: para os tubarões, tudo é relativo. Por isso eles não têm critérios.

Redação

Redação

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  • "J'accuse": O Direito no Brasil Passou a...

    ... La Carte ou seria La Gilmar-Moro?

    Comentar mais o que, sem entrar no rebolado do Teatro de Revista das Chanchadas Jurídicas? 

    Só rindo e supremamente, antes de chorar pela tragédia que abriga esse circo dos horrores, incluso o Mordomo de Vampiro.

  • A aplicação do Direito exige

    A aplicação do Direito exige critérios.

    Concordo com esta afirmação.

    Antigamente os juízes empregavam o critério do "corporativismo" sempre que tivessem que julgar algo que lhes interessava (ou que dissesse respeito a um membro do Poder Judiciário).

    O corporativismo não seria necessariamente um problema se os juízes cumprissem e fizessem cumprir fielmente os princípios constitucionais do Direito Penal: devido processo legal, direito de defesa, acesso à prova e possibilidade de fazer contraprova, presunção de inocência (inexistência de culpa sem prova inequívoca), ausência de motivação política de quem acusa e de quem julga, etc...

    Todavia, desde o Mensalão os membros do MP e do Judiciário ultrapassaram o Bojador. Eles não são mais corporativistas e sim PORCOrativistas, pois acusam e condenam inspirados num verdadeiro espírito de PORCO.

    Isto explica, aliás, como e porque promotores, procuradores e juízes estão EMPORCALHANDO o ciência jurídica no Brasil.

  • A meu ver, tubarões são a

    A meu ver, tubarões são a classe dirigente que avalizou o golpe. Eles possuem um critério: quem tem mais poder econômico come os demais. Alguém, em um tempo não muito distante e, em uma conjuntura parecida, proferiu: "a lei, ora a lei".  

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