Por Jorge Luis Borges
Enviado por Gilberto Cruvinel
Vi no relógio da pequena estação que já passavam das onze da noite. Fui caminhando até o hotel. Senti, como das outras vezes, a resignação e o alívio que os lugares muito conhecidos nos infundem. O largo portão estava aberto; a casa de campo, às escuras. Entrei no vestíbulo, cujos pálidos espelhos repetiam as plantas do salão. Curiosamente, o dono do hotel não me reconheceu e estendeu-me o livro de registro. Peguei a pena que estava presa à escrivaninha, molhei-a no tinteiro de bronze e, ao inclinar-me sobre o livro aberto, ocorreu a primeira surpresa das muitas que essa noite me depararia. Meu nome, Jorge Luis Borges, já estava escrito e a tinta, ainda fresca.
O dono disse-me:
– Pensei que o senhor já tivesse subido.
Depois, olhou-me bem e corrigiu-se:
– Desculpe. O outro se parece tanto, mas o senhor é mais jovem.
Perguntei-lhe:
– Em que quarto ele está?
– Pediu o 19 – foi a resposta.
Era o que eu temia.
Larguei a pena e subi correndo as escadas. O quarto 19 ficava no segundo andar e dava para um pobre pátio desmantelado em que havia uma varanda e, lembro-me, um banco de praça. Era o quarto mais alto do hotel. Abri a porta que cedeu. Não haviam apagado o lustre. Sob a impiedosa luz eu me reconheci. De costas na estreita cama de ferro, mais velho, enfraquecido e muito pálido, estava eu, os olhos perdidos nas altas molduras de gesso. Veio-me a voz. Não era precisamente a minha; mas a que costumo ouvir em minhas gravações, ingrata e sem matizes.
– Que estranho – dizia –, somos dois e somos o mesmo.
Mas nada e estranho nos sonhos.
Perguntei assustado:
– Então, tudo isto é um sonho?
– É, tenho certeza, meu último sonho.
Com a mão mostrou o frasco vazio sobre o mármore da mesinha-de-cabeceira.
Você terá, entretanto, muito com que sonhar, antes de chegar a esta noite. Em que dia você está?
– Não sei muito bem – disse-lhe aturdido. – Mas ontem fiz sessenta e um anos.
– Quando sua vigília chegar a esta noite, você terá feito, ontem, oitenta e quatro. Hoje estamos em 25 de agosto de 1983.
– Terei de esperar muitos anos – murmurei.
– Para mim já nada me resta – disse ele bruscamente.
– Posso morrer a qualquer momento, posso perder-me naquilo que não sei e continuo sonhando com o duplo. O fatigado tema que me deram os espelhos e Stevenson.
Senti que a evocação de Stevenson era uma despedida e não uma atitude pedante. Eu era ele e compreendia. Não bastam os momentos mais dramáticos para ser Shakespeare e dar com frases memoráveis. Para distraí-lo, disse-lhe:
– Sabia que isso ia acontecer com você. Aqui mesmo há anos, em um dos quartos abaixo, iniciamos o rascunho da história deste suicídio.
– Sim – respondeu-me lentamente, como se amealhasse recordações, Mas não vejo relação. Naquele rascunho eu havia comprado uma passagem de ida para Adrogué, e já no hotel Las Delicias havia subido até o quarto 19, o mais afastado de todos. Ali eu me suicidara.
– Por isso estou aqui – disse-lhe.
– Aqui? Sempre estamos aqui. Aqui o estou sonhando na casa da rua Maipú. Aqui estou indo embora, no quarto que foi da mãe.
– Que foi da mãe – repeti, sem querer entender. – Eu sonho com você no quarto 19, no pátio de cima.
– Quem sonha com quem? Eu sei que sonho com você, mas não sei se você está sonhando comigo. O hotel de Adrogué foi demolido já faz tantos anos, vinte, talvez trinta.
Quem sabe quantos.
– O sonhador sou eu – repliquei com certo desafio.
– Você não se dá conta de que o fundamental é averiguar se há um único homem sonhando ou dois que sonham um com o outro.
– Eu sou Borges, que viu seu nome no livro de registro e subiu.
– Borges sou eu, que estou morrendo na rua Maipú.
Houve um silêncio, o outro disse-me:
– Vamos fazer a prova. Qual foi o momento mais terrível de nossa vida?
Inclinei-me sobre ele e ambos falamos ao mesmo tempo. Sei que nós dois mentimos.
Um tênue sorriso iluminou o rosto envelhecido. Senti que, de algum modo, esse sorriso refletia o meu.
– Nós mentimos um para o outro – disse-me ele – porque nos sentimos dois e não um. A verdade é que somos dois e somos um.
Essa conversa me irritava. Foi o que eu lhe disse.
Acrescentei:
– E você, em 1983, não vai revelar-me nada sobre os anos que me faltam?
– O que posso dizer-lhe, pobre Borges? Repetir-se-ão as desgraças às quais você já está acostumado. Ficará sozinho nesta casa. Tocará nos livros sem letras e no medalhão de Swedenborg e na bandeja de madeira com a Cruz Federal. A cegueira não é a treva; é uma forma de solidão. Você voltará à Islândia.
– A Islândia! A Islândia dos mares!
– Em Roma, você repetirá os versos de Keats, cujo nome, como o de todos, foi escrito na água.
– Nunca estive em Roma.
– Há outras coisas também. Você escreverá nosso melhor poema, que será uma elegia.
– À morte de… – disse eu. Não me atrevi a dizer o nome.
– Não. Ela viverá mais do que você.
Ficamos em silêncio. Prosseguiu:
– Você escreverá o livro com o qual sonhamos tanto tempo. Por volta de 1979, você compreenderá que sua suposta obra é apenas uma série de rascunhos, uma miscelânea de rascunhos, e você cederá à vã e supersticiosa tentação de escrever seu grande livro. A superstição que nos infligiu o Fausto de Goethe, Salammbô, o Ulysses. Inacreditavelmente, enchi muitas páginas.
– E, afinal você compreendeu que havia fracassado.
– Algo pior. Compreendi que era uma obra-prima no sentido mais opressivo da palavra. Minhas boas intenções não haviam passado das primeiras páginas; nas demais estavam os labirintos, as facas, o homem que se crê uma imagem, o reflexo que se crê verdadeiro, o tigre das noites, as batalhas que retornam ao sangue, Juan Muraria cego e fatal, a voz de Macedonio, a nave feita com as unhas dos mortos, o inglês antigo repetido durante as tardes.
– Esse museu me é familiar – observei com ironia.
– Além disso, as falsas recordações, o duplo jogo dos símbolos, as longas enumerações, o bom manejo do prosaísmo, as simetrias imperfeitas que os críticos descobrem com estardalhaço, as citações nem sempre apócrifas.
– Você publicou esse livro?
– Brinquei, sem convicção, com o melodramático propósito de destruí-lo, talvez pelo fogo. Acabei publicando-o em Madri, sob pseudônimo. Falou-se de um inábil imitador de Borges, que tinha o defeito de não ser Borges e de haver repetido o aspecto exterior do modelo.
– Isso não me surpreende – disse eu. – Todo escritor acaba sendo seu discípulo menos inteligente.
– Esse livro foi um dos caminhos que me conduziram a esta noite. Quanto aos demais… A humilhação da velhice, a convicção de já haver vivido cada dia…
– Não escreverei esse livro – disse.
– Você vai escrevê-lo. Minhas palavras, que agora são o presente, serão apenas a memória de um sonho.
Incomodou-me seu tom dogmático, sem dúvida o mesmo que uso em minhas aulas. Incomodou-me que nos parecêssemos tanto e que ele se aproveitasse da impunidade que a iminência da morte lhe propiciava. Para revidar, disse-lhe:
– Você tem tanta certeza de que vai morrer?
– Sim – replicou. – Sinto uma espécie de doçura e de alívio que nunca senti. Nem posso expressá-lo. Todas as palavras requerem uma experiência compartilhada. Por que o que digo parece incomodá-lo tanto?
– Porque nos parecemos demais. Detesto sua cara, que é minha caricatura, detesto sua voz, que é arremedo da minha, detesto sua sintaxe patética, que é a minha.
– Eu também – disse o outro. – Por isso resolvi suicidar-me.
Um pássaro cantou lá na casa de campo.
– É o último – disse o outro.
Com um gesto, chamou-me para seu lado. Sua mão procurou a minha. Recuei; temi que as duas se confundissem.
Disse-me:
– Os estóicos ensinam que não devemos queixar-nos da vida; a porta da prisão está aberta. Sempre entendi assim, mas a preguiça e a covardia me detiveram. Há uns doze dias, eu estava dando uma conferência em La Plata sobre o Livro VI da Eneida. De repente, ao escandir um hexâmetro, descobri qual era meu caminho. Tomei esta decisão. A partir daquele momento, senti-me invulnerável. Minha sorte será a sua,
você receberá a inesperada revelação, em meio ao latim e a Virgílio, e já terá esquecido inteiramente este curioso diálogo profético, que transcorre em dois tempos e em dois lugares. Quando voltar a sonhar com isso, você será o que eu sou e você será meu sonho.
– Não esquecerei isso e vou escrevê-lo amanhã.
– Ficará no fundo de sua memória, debaixo da maré dos sonhos. Quando você o escrever, pensará estar urdindo um conto fantástico. Não será amanhã, ainda lhe faltam muitos anos.
Parou de falar, compreendi que havia morrido. De certo modo eu morria com ele; inclinei-me angustiado sobre o travesseiro e já não havia ninguém. Fugi do quarto. Do lado de fora não havia o pátio, nem as escadas de mármore, nem a grande casa silenciosa, nem os eucaliptos, nem as estátuas, nem o caramanchão, nem os chafarizes, nem o portão da grade da casa de campo no povoado de Adrogué.
Fora outros sonhos esperavam-me.
………………………………………………………………………………………………………………
Jorge Luis Borges, “A Memória de Shakespeare”, Obras Completas, volume III, ©1998 by Maria Kodama Copyright ©1998 das traduções by Editora Globo S.A. . Tradução de Bella Jozef. Edição baseada em: Jorge Luis Borges – Obras Completas, publicada por Emecé Editores S.A., 1989, Barcelona – Espanha.
Nível já está em repique, aumentou 10 centímetros neste domingo, e chuva intensa com ventos…
Operadoras têm amparo jurídico e atuação política, mas ANS impõe prazo para resposta e pode…
Diretora da Avabrum, Jacira Costa é uma das mães que lutam para fazer justiça às…
Para evitar golpes, cidadãos devem buscar ofertas e formalizar acordos apenas nas plataformas oficiais de…
Movimento tem a previsão de abrir mais uma Cozinha Solidária em Canoas e precisa de…
Em Eldorado do Sul, a sociedade civil por responsável por realocar 80% das famílias, mas…
View Comments
Genial. Mágico. Um dos
Genial. Mágico. Um dos melhores escritores do Mundo!