O impacto do desastre de Mariana na vida dos índios Krenak

Lama tóxica trouxe fim da pesca e caça, alterando drasticamente estilo de vida na aldeia indígena
Para os índios Krenak que vivem às margens do rio Doce, a lama proveniente da mina da Samarco trouxe o fim da pesca e da caça e o ocaso de um estilo de vida. A empresa não responde se há salvação para aquelas águas
por Luísa Torre, Patrik Camporez
“Não fale a palavra Samarco. É amaldiçoada, assim como o rio está amaldiçoado.” O recado veio de um agente da Funai, pouco antes de a reportagem pisar nas aldeias indígenas Krenak, localizadas às margens do rio Doce, no município de Resplendor, em Minas Gerais.
Um ano e meio após um mar de lama e rejeitos de minério vazar das barragens de Fundão, em Mariana, a vida às margens do rio Doce se transformou completamente. Se antes caçar, pescar, beber água do rio e irrigar as plantações era parte do dia a dia, as 126 famílias indígenas que viviam da agricultura nas sete aldeias Krenak agora se acostumam a buscar as compras nos supermercados da cidade e a ver, diariamente, caminhões-pipa rodando pelas frágeis estradas de barro, cortando a calmaria. Os sons de galinhas, cachorros e passarinhos se misturam ao vai e vem dos carros e motos que muitos índios aproveitaram para comprar com a indenização paga pela Samarco.

Os veículos se fazem necessários porque era do rio que vinha grande parte do sustento. Antes, os índios costumavam caçar capivaras, tatus e outros animais que ali habitam. A caça foi comprometida. Os peixes, base da alimentação nas aldeias, saíram definitivamente do cardápio. Agora saem das prateleiras dos supermercados as proteínas que fazem parte da nova dieta: boi, frango e porco.
Depois que a lama chegou, os índios foram proibidos de se aproximar da água sagrada do “Watu”, o rio Doce na linguagem krenak. Uma cerca chegou a ser instalada nas margens pela Samarco. Depois de reclamações, a barreira foi retirada, e as estacas que a formavam ainda são visíveis.
Com a morte do Watu, se perdeu também a identidade de índios Krenak. “A gente vive de caça e de pesca para comer, e agora não pode nem caçar mais. Já tem um ano que eu não como nem um tatu, porque eles bebem água que está contaminada. O rio tem muitos peixes para o índio comer, o alimento do índio é o peixe. Mas para nós, o rio morreu”, conta Dejanira Krenak, de 67 anos, uma das principais referências das aldeias.
Dona Deja, como é conhecida, tem um sorriso fácil e de simplicidade dócil. Ela nos recebe em sua casa de alvenaria, com dois quartos e uma grande varanda, no meio de um terreno com algumas árvores e uma caixa-d’água recém-instalada. Ela oferece um café antes de falar. Conta que até o artesanato, fonte de renda para os índios, foi afetado pela chegada da lama. O obá, uma semente encontrada às margens do Doce, também está contaminado. “A gente está catando mais longe do rio, porque perto está tudo contaminado”, diz dona Deja. “Depois que o Watu foi envenenado, nossas crianças não têm onde se banhar”, reclama, enquanto pinta os corpos dos netos e dos parentes utilizando um óleo extraído de uma planta nativa. Um grupo sairia de ônibus, com destino ao Rio de Janeiro, para participar de um evento onde se arrecadariam fundos para os Krenak construírem uma lagoa artificial em seu território.
Leonir Boka tem 31 anos. Boka significa “peixe”. Ele é cacique de 25 famílias. Foi escolhido para a função de liderança quando tinha apenas 23. Tem um jeito tímido, mas, para defender seu povo, fala com desenvoltura e vontade. Nunca imaginou que lideraria a aldeia Atorã num momento de tanta destruição. “Não tem casa, não tem dinheiro ou qualquer coisa que pague o que fizeram com o rio, o que fizeram com nossa gente. Se fosse para escolher qualquer coisa nesse mundo, a gente queria o rio de volta”, diz.
Ninguém mais chega perto do rio. Os batismos e rituais sagrados realizados nas margens e pequenas ilhas do manancial foram extintos de uma hora para outra. Os casos de depressão, alcoolismo e doenças se multiplicam à medida que o tempo passa, segundo os caciques e a Funai.
“A lama atingiu até o jeito de pensar do índio, o dia de amanhã. A gente vive um dia após o outro. O rio era um meio forte onde se praticava a cultura, e hoje não pode ser praticado mais. A gente fazia as caçadas, ritual sagrado com nossos velhos nas ilhas do Watu. Assim como o rio Doce morreu, nossa cultura vai morrendo”, lamenta Leonir. Ele conta que sem o rio o lazer também minguou. “Hoje só temos um campo de futebol. O rio era um meio de diversão para o jovem, era onde a gente praticava esporte, tinha competição de bote… E agora não pode mais.”

 

Redação

Redação

View Comments

  • Mariana

    É um absurdo a Vale até agora não ter pago a multa a ela imposta pelo desastre ambiental que causou.Pelo menos dar assistência ao povo ribeirinho para sua sobrevivência.

Recent Posts

Concessão de terras e combate ao MST foram fake news do Bolsonaro

Ceres Hadich conta à TVGGN que concessão de 420 mil terrenos foi apenas um contrato…

1 minuto ago

Anarriê, alavantú XXVI – O espermatozoide que invadiu o Banco Central do Brasil, por Rui Daher

Como os espermatozoides são únicos, independentes, as taxas de juros no Brasil também o são…

21 minutos ago

O senador Romário continua oportunista, mesmo fora do campo, por Percival Maricato

Romário e cia conseguem emplacar outra CPI, para o mesmo fim: investigar a corrupções na…

46 minutos ago

O STF e os guardas da porta do presídio, por Luís Nassif

Mais um desafio para o CNJ e para o CNMP. Se não for enfrentado desaparecerá…

2 horas ago

Universidade de Columbia ameaça suspender estudantes pró-Palestina, mas manifestantes resistem

Ocupação teve início em 18 de abril, após a prisão de 100 manifestantes em Nova…

12 horas ago

Emissão de valores mobiliários sobe 50% no trimestre

Total divulgado pela CVM chega a R$ 175,9 bilhões; debêntures puxaram crescimento, com emissão de…

13 horas ago