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Estrela não tão distante

Conforme Freud e a psicanálise, a arte é, muitas vezes, a sublimação de pulsões e desejos socialmente condenados, considerados sujos, feios, impuros; retrabalhados para serem apresentados no seu inverso, como algo belo, sublime – aqui nos termos de Edmund Burke, do século XVIII. No século XX, muitas vanguardas artísticas, se não afrontaram a ideia de sublimação, atacaram a ideia do belo na arte – fundamento de certa proposta artística e de visão de mundo -, minando posições normativas sobre o que seria legítimo ou não no campo estético, e por mais que o capital cultural siga dando as cartas do que vale e o que não ao grande público e ao público endinheirado, todo um circuito se fez à sua margem – ainda que não raro seja fagocitado, vide os graffitis urbanos.

Porém, e quando se põe a questionar a ideia da sublimação em favor de algo sublime, se utilizando dessa crítica à uma pretensa verdade artística? Carlos Wieder, personagem central de Estrela Distante, de Roberto Bolaño, talvez seja uma resposta.

Quando a arte perde sua função sublimadora e deixa de ser a representação do horror e passa a ser a apresentação do horror – mais que isso, horror produzido pelo próprio artista, como horror, pelo horror e para sua apresentação horrorífica.

A passagem de Guernica para as fotos de guerra, para programas estilo Datena – cuja performatividade do discurso produz o horror que ele diz denunciar. Carlos Wieder é apenas um passo além, um Datena sem covardia e que não só prega que se faça, como faz com as próprias mãos. Covardemente, sorrateiramente, escusado pelo terrorismo de Estado do governo golpista de Pinochet. Um governo que torturou e matou com requintes de crueldade, mas que expulsa o oficial que ousou tornar a miséria das vítimas mais que um momento de regozijo próprio e fez disso arte – uma arte que perturba, porque aquilo que apresenta é mais que uma representação do que a perversão de estado é. E Wieder é um perverso – como são perversos os covardes que defendem a ditadura e elogiam torturadores, incapazes de assumir suas próprias limitações, estampadas em suas testas -, mais inteligente, mais letrado e mais sorrateiro do que os exemplos que hoje temos à frente da nação, mas facilmente identificável em “intelectuais” e artistas que posam de “civilizados de direita”, com colunas em jornais “sérios”, espaço em programas cultos de televisão e cadeiras em universidades de prestígio.

Carlos Wieder é uma representação de Bolaño, representa a literatura nazista na América, aquela que participa de oficinas literárias, que escreve poemas com fumaça nos céus e com sangue nos corpos das suas vítimas. Carlos Wieder representa a arte do futuro, se seguirmos agindo sem a radicalidade que o momento exige.

08 de fevereiro de 2020

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