Contardo Calligaris, Roy Wagner e o carnaval da Tuiuti, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Foto Nexo Jornal

Contardo Calligaris, Roy Wagner e o carnaval da Tuiuti

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Durante a ditadura, a direita brasileira era nacionalista, violenta e adotava uma posição ambígua em relação ao carnaval. A festa popular era tolerada, mas considerada potencialmente perigosa. Sua politização não era admitida. Quando ocorreu o fato foi tratado como caso de polícia, indício de sedição e/ou de sublevação do populacho.

O fim da ditadura coincidiu com a mercantilização do carnaval carioca. Leonel Brizola construiu o sambódromo e a Rede Globo transformou a festa popular num produto televisivo de exportação. Os carnavalescos passaram a refletir sobre a política, mas sempre de uma maneira suave. Os excessos foram proibidos. Em 1989, apesar da CF/88 garantir a liberdade de expressão e impedir a censura prévia, a Justiça obrigou um carro de Joãozinho Trinta (o Cristo mentido) a desfilar coberto com uma lona.

A chegada do PT à presidência produziu uma curiosa inversão. Sem poder recorrer à violência, após a derrota eleitoral a direita se apropriou do carnaval para fustigar os governos petistas. O ápice deste fenômeno ocorreu nas ruas durante as manifestações que possibilitaram o golpe de estado contra Dilma Rousseff, com blocos encenando marchinhas e dancinhas contra o PT e mulheres nuas desfilando contra a corrupção dos costumes.

O julgamento de Dilma Rousseff não foi nem técnico, nem político. É fato: durante as votações do Impedimento a Câmara dos Deputados e o Senado foram transformados em salões carnavalescos. Fantasiados ou não, deputados e senadores corruptos (muitos deles perseguidos pela Justiça por crimes graves e gravíssimos) corriam ao microfone para dizer sim ao Impedimento em defesa da ética e da família, contra a corrupção, em homenagem ao Coronel Ustra, etc…

Sintoma de uma grave doença política e econômica, a queda da presidenta eleita pela maioria dos brasileiros não foi capaz de salvar o país da tirania. Muito pelo contrário. Apesar do isolamento internacional e da degradação das instituições, o golpe “com o STF com tudo” se esforça agora para garantir que o poder ficará definitivamente nas mãos da direita.

A arma de destruição em massa utilizada agora contra o PT é a Lei da Ficha Limpa. O ex-presidente Lula foi denunciado porque teria recebido a posse e/ou a propriedade de um apartamento. Todavia, a ausência de prova deste fato não resultou em absolvição do réu. Sérgio Moro condenou Lula com base em ilações, convicções e acusações jornalísticas. Os desembargadores do TRF-4 imediatamente confirmaram a condenação considerando irrelevante a inexistência de prova do crime imputado ao ex-presidente que lidera as pesquisas eleitorais.

É evidente, portanto, que o PT será excluído da disputa eleitoral mediante a carnavalização do Processo Penal e do Direito Penal. Criado e estruturado para cumprir a Lei, o Judiciário brasileiro faz de conta que a Lei não existe seja quando inocenta prévia e preventivamente mafiosos de direita (FHC, Aécio Neves, José Serra, Geraldo Alckmin, etc…) e quando a coloca  fora do alcance de lideranças petistas ao possibilitar sua condenação ilegal (Lula, José Dirceu, Dilma Rousseff, etc…).

“No caso do Brasil, não é suficiente evocar formas de miséria que colocam uma parte relevante da população fora da comunidade que deveria fundar a autoridade da lei. Uma radiografia mais completa da comunidade brasileira – que deveria ser o suporte coletivo da autoridade da lei – indicaria que não se trata apenas de uma comunidade que teria produzido ou produziria margens de exclusão. De fato, a modernização acelerada do país comprometeu o valor da representação arcaica da lei (o que é normal), mas sem constituir uma comunidade moderna. É preciso perguntar se existe hoje, de fato, no Brasil, um sentimento de comunidade de destino ou de bem comum que permita, em princípio, fundar – na representação de todos ou quase todos – a autoridade da lei.” (Hello, Brasil e outros ensaios, Contardo Calligaris, editora Três Estrelas, São Paulo, 2017, p. 241)

Calligaris presume de maneira equivocada que, entre nós, a representação arcaica da lei foi ou poderia ter sido diferente. Ele parece ignorar que no  Brasil, a lei sempre foi um instrumento bárbaro de dominação e nunca chegou a ser o fundamento estruturante da comunidade civilizada. A carnavalização da política levou inevitavelmente à carnavalização da Justiça, mas ocorreu uma nova inversão.

Este ano foi a esquerda que se apropriou do carnaval. Isso ocorreu por causa do polêmico desfile da escola de samba Paraíso do Tuiuti. As imagens falam por si mesmas e parecem confirmar as palavras de Contardo Calligaris. No Brasil, a “… comunidade é uma farsa que corre atrás da bola e desfila no carnaval.” (Hello, Brasil e outros ensaios, Contardo Calligaris, editora Três Estrelas, São Paulo, 2017, p. 241).

Jair Bolsonaro, maior beneficiário da crise política inventada pelos três patetas, aproveitou o carnaval para dizer que se for eleito mandará metralhar a Rocinha. Ele foi aplaudido pelos empresários que ouviram seu discurso, mas voltou atrás ao lembrar que pode ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional se cumprir a promessa genocida.

O poder político do mercado não é ilimitado. O poder ideológico do carnaval também tem limites. Na quarta-feira de cinzas o sucesso burlesco da oposição deixará de existir. Findo o período de fingimento, restará apenas a triste realidade de um país sem povo e incapaz de resistir a um regime grotesco de exceção porque não é capaz de compelir os juízes a cumprir e fazer cumprir a lei.

“A tendência da cultura é manter-se a si própria, reinventando-se.” (A invenção da cultura, Roy Wagner, Cosacnaify Portátil, São Paulo, 2014 p. 157)

A direita se apropriou do carnaval, mas pode perfeitamente censurá-lo e usar a violência policial contra os dissidentes. A esquerda quer se apropriar do desfile da Tuiuti, mas se esquece que o carnaval é uma mercadoria e, enquanto tal, condenada à obsolescência é programada e a cumprir apenas uma finalidade: reforçar econômica e ideologicamente o poder do mercado.

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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  • Contardo.....

    Bipolaridade Esquerdopata Tupiniquim está fora de controle. Remédios não fazem mais efeito. Então a 'Mercantilização' do Carnaval se deu no Governo Leonel Brizola? Aquele que tirou a Polícia e o limitado controle do Estado das Favelas, tornando-as em definitivo a Zona da Bárbarie? O mesmo que construiu com Dinheiro Público, o suntuoso e milionário Sambódromo, desenhado pelo comunista Oscar Niemayer (elite são os outros), defronte à Favelas e Barracos miseráveis, imundos, com esgotos a céu aberto, com doenças medievais como lepra ou leschmaniose? Socialista, os tais tão propagandeados e festejados? Como festejadas são as Escolas de Samba. Reduto do tráfico de drogas (o que aconteceu com a cumplicidade da Mangueira com os depósitos e saídas estratégicas para Traficantes? Ou já esquecemos?) E apoio e lavanderia de dinheiro para Bicheiros. Em todas as Escolas, o 'Patrono' ou seja o 'Proprietário' é um Bicheiro (lavagem de dinheiro, corrupção, extorsão, assassinatos, ...) E ainda queremos explicar o Brasil? É Inacreditável.(Mais de 10 crianças foram mortas a tiros no RJ, apenas em Janeiro. Provavelmente devem ter reagido, para merecerem tal destino. A Mídia ignora e omite solenemente. Como tentou fazer com Febre Amarela). O Brasil é de muito, mas muito, mas muito fácil explicação. 

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