João Gilberto e a afirmação nacional

Escrevi esta coluna na Folha em 13 de maio de 1996, depois de sair de um show de João Gilberto, e minha caçulinha da época, a Luizinha, ter se surpreendido com o fato de ele ser azul.

João Gilberto

LUÍS NASSIF

Na platéia do Tom Brasil, o silêncio é quase religioso. Em sinal de respeito, nem os gelos tilintam nos copos.
O artista entra sozinho, com seu violão, e abre o show com um samba clássico “eu nasci num clima quente/você diz prá toda gente/que sou moreno demais”.
Durante hora e meia desfilará o Brasil por suas notas. Tem 65 anos e suas interpretações mais conhecidas são de quase 40 anos atrás.
Está-se em pleno 1996, com a globalização em marcha e a classe média francamente internacionalizada.
No “chat” “Brasileiros no Exterior”, disponível no Universo Online da Folha, o brasileiro do Canadá, a brasileira de Ohio, a brasileirinha da Pensilvânia, o jovem brasileiro da Austrália -e brasileiros daqui mesmo- trocam impressões, falam de “bytes” e “bits”, de “chats” e “mIRCs” e falam de Brasil.
Alguns ficarão por lá, lutando no front externo. A maior parte voltará para engrossar as fileiras nacionais, para a grande batalha da globalização que permitirá ao país consagrar-se no próximo século como nação justa e grande.
No palco, homem e violão não incorporaram nenhum dos tiques da era da Internet.
Permanece com seu violão acústico pavimentando a melodia com harmonias precisas, mais elaboradas que nos anos 50, mas quase da mesma natureza. Não muda e não envelhece.
E me dou conta, surpreso, de que está a apenas cinco anos dos 70.
Há quase 40 anos, com seus acordes e sua voz, João Gilberto deflagrou o “aggiornamento” cultural da classe média brasileira, ajudando a construir os laços comuns que, hoje em dia, unem em torno de um “chat” brasileiros da classe média de todas as partes do mundo, compartilhando os mesmos valores, e tendo uma identidade própria, em qualquer canto do mundo onde estejam.
Madames
O Rio começara a se internacionalizar no período da guerra. No final dos anos 40 há entre a elite um franco movimento de afirmação dos valores culturais nacionais.
Muda a decoração, começa a surgir uma arquitetura nacional (antes de Niemayer, os extraordinários e pouco reconhecidos irmãos Roberto), modernizam-se a pintura e a literatura, mas tudo em âmbito restrito dos salões de uma aristocracia pré-industrial.
Essa elite endinheirada e superficial percebe que, longe do asfalto, existia uma cultura brasileira autêntica. Mas o elemento negro incorporava-se nas festas cariocas apenas como curiosidade -o “esquisito apimentado” de que falava Mário de Andrade.
Eram culturas que pouco se misturavam, porque “madame diz que a raça não melhora/que a vida piora/por causa do samba”, como cantava Janet de Almeida.
Juventude dourada
Nos anos 50, a internacionalização sai da solenidade dos salões para os apartamentos dos jovens da incipiente classe média -que começa a tomar forma no rastro da industrialização do país e passa a buscar padrão mais internacional.
Poderiam ter se tornado apenas “macaquitos” despersonalizados, não fosse, entre outros, João Gilberto.
Tom Jobim é o gênio internacionalista que aprofunda o corte musical iniciado por Garoto e outros violonistas da rádio Nacional, pelos discípulos de Villa Lobos e Radamés Gnatalli, por Ary Barroso e Caymmi. Vinicius o poeta eterno.
Mas Gilberto é a síntese fundamental, que junta o popular com o internacional, o centro com a periferia, a favela com a cidade, fornecendo os elementos para a consolidação definitiva da música popular brasileira como a mais criativa do planeta.
Não foram apenas os acordes, a batida e o novo estilo de cantar.
Ao misturar no mesmo caldeirão Geraldo Pereira, Ary, Haroldo Barbosa, Janet de Almeida, Garoto, Lupicínio, Alcyr Pires Vermelho, Herivelto, o repertório dos conjuntos vocais dos anos 40, com os Lyra, Bôscoli, Donato e Menescal que surgiam, João Gilberto define o critério, constrói a ponte e entrega a todos os que vieram depois a régua e o compasso.
No breve período de alguns anos, de 58 a meados dos anos 60, ajudou a moldar uma cultura.
Sem palavras
No palco, ele não diz mais que meia dúzia de palavras, além das letras das músicas. Há dúvidas até sobre se fala mesmo.
Além disso, tem fama de neurastênico. Não cumprimentou o público na entrada, nem se despediu na saída.
Mas quando cantarola qualquer música que fale a palavra Brasil o rosto se transfigura, há um brilho maior nos olhos, uma emoção paradoxalmente tão discreta, mas tão intensa, que, encantada, mas sem conseguir entender, Luizinha, 13, sintetizou: “Tem uma luz roxa bonita em volta dele”.
Deve ser a luz que circunda aquelas pessoas que vêm ao mundo com a missão especial de ajudar a construir nações.

Luis Nassif

Luis Nassif

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