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As teias ideológicas do Homem Aranha 2

O filme “O Espetacular Homem-Aranha 2 – A Ameaça de Electro”  entrou em cartaz no Brasil no dia internacional do trabalho, também conhecido como dia do trabalhador dependendo de quem se referir ao 1o. de maio e com que finalidade. Onde quer que existam questões classistas em jogo, os ideólogos são tentados ocupar seus cérebros. No cinema e fora dele não é diferente.

 

Marx e Engels estudaram profundamente o fenômeno ideologia e chegaram a conclusões interessantes que podemos utilizar como ponto de partida analisar qualquer obra de arte:

 

“La formación de las ideas, el pensamiento, el trato espiritual de los hombres se presentan aquí todavía como emanación directa de su comportamiento material. Y lo mismo ocurre con la producción espiritual, tal y como se manifiesta en el lenguaje de la política, de las leyes, de la moral, de la religión, de la metafísica, etc., de un pueblo. Los hombres son los procuctores de sus representaciones, de sus ideas, etc., pero se trata de hombres reales y activos tal y como se hallan condicionados por un determinado desarollo de sua fuerzas productivas y por el trato que a él corresponde, hasta llegar a sus formas más lejanas.” (Feuerbach. Oposicion entre las concepciones materialista e idealista – I Capitulo de La Ideologia Alemana – C. Marx e F. Engels, Obras Escogidas, I, Editorial Progreso Moscú, 1986, p. 21)

 

Em seu estudo sobre o tema, Terry Eagleton afirma que:

“Se a ideologia não pode ser divorciada do signo, então o signo também não pode ser isolado das formas concretas de intercambio social. É apenas dentro destas que o signo ‘vive’ e, por sua vez, essas formas de intercambio devem estar relacionadas com a base material  da vida social.  O signo e sua situação social estão inextricavelmente fundidos, e essa situação determina a partir de dentro a forma e a estrutura de uma elocução. Temos aqui, então, o delineamento de uma teoria materialista de ideologia que não a reduz simplesmente a um ‘reflexo’ da ‘base’ economica, mas concede à materialidade da palavra, e aos contextos discursivos a que se prende, o que lhe é devido.” (Ideologia, Terry Eagleton, Boitempo Editorial – Unesp, 2009, p. 172)

 

Especificamente em relação a arte, Leandro Konder assegura que:

“Com o capitalismo houve um desenvolvimento extraordinário dos meios técnicos e recursos de linguagem postos à disposição dos artistas, mas as condições psicológicas geradoras de fortes tensões impulsionaram os criadores estéticos na direção de uma postura contestadora: a arte tem sido, predominantemente, expressão de insatisfação, de questionamento, frequentemente de revolta, em face do como está organizada a sociedade.” (A questão da Ideologia, Leandro Konder, Companhia das Letras, 2003, p. 217/218)

 

Levando em conta as lições dos três autores citados, o que mais desperta atenção em Homem Aranha 2 é o processo de construção do vilão Electro. Antes de sua transformação ele era apenas um trabalhador solitário explorado pelo empregador e humilhado pelos superiores hierárquicos. Max queria desesperadamente ter amigos e ser reconhecido. A única coisa que consegue é ser obrigado a trabalhar quando todos são mandados para casa em razão da morte do dono da empresa. Ele sofre uma acidente de trabalho e se transforma em Electro.

 

O herói geneticamente modificado continua previsível. Dele pouco ou nada merece ser dito aqui.

 

O trabalho enobrece o homem, disse o maior entusiasta da ética protestante. Segundo Max Weber o esforço continuado, dedicado e devidamente remunerado e valorizado dos colonizadores dos EUA seria a chave para entender o sucesso econômico e político do país. Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto, teria dito Deus a Adão ao expulsar ele do Paraíso. Num país que se considera cristão e digno das palavras de Max Weber como os EUA, o trabalho deveria ser valorizado no plano estético, certo? Errado. Não é isto o que ocorre na nova sequencia de Homem Aranha.

 

No primeiro filme desta série, quando foi transformado o herói não estava trabalhando. Ele estava bisbilhotando a empresa em que o pai trabalhou. Peter Parker não sofreu um acidente de trabalho, ele teve um encontro acidental com seu destino, sofrendo a transformação que lhe permitiria se elevar acima dos demais em razão de sua excepcional moralidade. De certa maneira, Parker já era um herói em potencial. A picada da aranha apenas lhe permitiu fazer melhor o que ele estava destinado a fazer.

 

Apesar de estar trabalhando quando todos não estavam, de ser vítima de um acidente de trabalho, Max não vira um herói. Muito pelo contrário, ele é transformado em vilão. Quais são os defeitos pessoais atribuídos a Max em Homem Aranha 2? Solidão e desejo de notoriedade.

A solidão, entretanto, não é um defeito moral. É uma contingência imposta ao homem moderno pela urbanização, pelo individualismo e pela exagerada competição. A competição que isola os seres humanos é, aliás, considerada um valor positivo economica e culturalmente nas sociedades capitalistas modernas. O desejo de notoriedade tampouco pode ser considerado um defeito na atualidade.

 

Desde que se tornou capaz de dizer “eu” ao ver o próprio reflexo na água limpa parada o ser humano se tornou vaidoso. Pessoalmente, suspeito que antes de inventar a roda o homem inventou o espelho. O judaísmo e vários mitos gregos, cujos ensinamentos foram transmitidos oralmente desde tempos imemoriais até serem registrados por escrito, trazem advertências contra os perigos da vaidade. Mas não podemos deixar de admitir que a mesma tornou-se um componente da vida moderna. Atualmente, todos nós somos impelidos pela sociedade do espetáculo a exigir nossa cota pessoal de atenção. A internet a todos permite o exibicionismo, mas poucos são aqueles que viram criminosos. Aliás, até os criminosos se tornam objeto de culto popular.

 

Max não era e não poderia ser um vilão em potencial. Ele foi transformado em vilão. Após sofrer um acidente de trabalho ele é alvejado por policiais na rua, sendo preso e entregue a um cientista antiético que faz experiências vis com ele para tentar controlá-lo. As relações duvidosas entre a Polícia (que prendeu Electro) e o empresário inescrupuloso (a quem ele foi entregue) não ficam muito claras no filme, mas estão subentendidas. Numa sociedade que não é mais orientada para a valorização econômica do trabalho, o vilão só pode mesmo ser um trabalhador cuja dignidade foi desprezada pelas autoridades.

 

Resumindo: a ideologia que move as teias de Homem Aranha 2 é elitista e antitrabalhista, pois seu roteiro nega qualquer validade prática da ética protestante e deprecia o homem produtivo ou incapacitado durante o trabalho, culpando-o em razão dele ser um produto das contingencias que lhe foram social impostas. No filme, o trabalho não produz riquezas, nem confere dignidade, apenas traz infortúnios (acidente dentro da empresa, agressão policial nas ruas, abusos corporativos mais ou menos tolerados pelas autoridades e recriminação estética etc…). Não há qualquer possibilidade de resgatar o trabalhador Max após sua queda. Electro tem que morrer. E ele será executado pelo personagem elevado à condição de herói justamente porque não sofreu um acidente de trabalho. A atividade do Homem Aranha é de fato tão improdutiva que acaba acarretando a morte de sua amada.

 

Há várias maneiras de possíveis de ver este filme. Homem Aranha 2 pode ser encarado como a representação ideológica de uma sociedade doente, cuja cura seria possível se a doença fosse ao menos conhecida. A obra também pode ser vista como um instrumento estético de valorização da realidade que foi transfigurada, cuja existência subjacente ao filme seria um fato consumado que e está além de qualquer recriminação. No limite, o filme-negócio-que-desvaloriza-o-trabalho produz uma necessidade: um terceiro filme. Homem Aranha 2 seria, neste caso, apenas um produto entre vários produtos.

 

No primeiro caso, a ideologia distorcida concebida no filme pretenderia revitalizar as virtudes da sociedade que o produziu e que infelizmente degenerou. Uma negação desta natureza pode, porém, funcionar como uma droga que apazigua o mal estar social ao invés de curá-lo. “Los hombres son los procuctores de sus representaciones, de sus ideas…” como disseram Marx e Engels, mas a grande tarefa do homem não seria produzir ideologia, mas transformar as condições materiais em que ela é produzida para que uma sociedade mais justa possa nascer suprimindo as condições de produção da criminalidade que originam os malfeitores reais e seus duplos fictícios como Electro.

 

No segundo caso, a valorização estética de uma perversidade sócio-econômica que mereceria ser negada equivale a elevação da exclusão brutal e do cinismo à qualidade de valores positivos, com todas as consequencias devastadoras previsíveis. Nenhuma sociedade humana jamais resistiu à institucionalização da barbárie, pois como disse Terry Eagleton  “…o signo também não pode ser isolado das formas concretas de intercambio social”.

 

No último caso, a ideologia que move este filme-que-quer-outro-filme diz menos sobre seu conteúdo e sobre seus idealizadores e produtores e mais sobre o respeitável publico, que vai sendo sempre convidado a voltar e efetivamente volta ao cinema. Volta porque sua necessidade de consumir filmes-produtos-em-sequencia independe de qualquer qualidade ideológica intrínseca das obras que vão sendo produzidas para dar lucro a fim de que outras obras sejam produzidas para dar lucro a fim de que outras obras…

 

Quando refletiram sobre ideologia, Marx e Engels concluíram que o que move o mundo é a atividade material do homem. Tudo o mais seria representação emanación directa de su comportamiento material.”  O que move o mundo material do cinema, entretanto, é apenas uma ideologia: a crença de que o Homem Aranha 3 será melhor que Homem Aranha 2, que foi melhor que Homem Aranha 1, que foi melhor que o primeiro filme da trilogia Homem Aranha anterior.

 

A regressão ao infinito é impossível, mas pode ser retomada em outras séries de filmes semelhantes (como Homem de Ferro, Thor, Super Homem, X-Men, Capitão América, etc…).  A ideologia veiculada nestes filmes pode ser ou não relevante, pode sugerir ou não interesse ou reflexão. O que é relevante para nós é perceber como uma ilusão sustenta a produção material continuada de mais filmes em sequencias virtualmente intermináveis, transferindo renda dos espectadores para os produtores de ilusões para que eles continuem satisfazendo suas necessidades materiais e produzindo bens de consumo visuais.

 

Homem Aranha 2 não critica o capitalismo, nem pode ser a “…expressão de insatisfação, de questionamento, frequentemente de revolta, em face do como está organizada a sociedade” como disse Leandro Konder. O filme em questão (e outros de semelhantes séries) apenas mantém o capitalismo global funcionando. A experiência reiterada de consumo de filmes-que-querem-outros-filmes produzidos nos EUA impede os expectadores brasileiros de se transformarem em produtores de suas próprias sequencias cinematográficas a fim inverter o fluxo de produção simbólica da periferia para o centro com a mesma intensidade e lucratividade. 

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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