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Cinema: Um Doce Olhar

“UM DOCE OLHAR”

 

– Direção: Semih Kaplanoglu

– Turquia/Alemanha, 2010

 

O filme começa… floresta, árvores altíssimas, verde úmido, sons do ar, da folhagem pisada, dos passos do homem e de seu burrico, que carrega dois cestos nas laterais do seu lombo. Yakup anda de lá para cá, observa, mede com o olhar o que parece planejar fazer; e lança sua corda para o mais alto dos galhos e por ali sobe. Momento de tensão (guardemos a cena na memória). E observemos luz e cor.

Depois, aparecem pai e filho: Yusuf. A pedido do pai, ele lê a folhinha do dia: é 22 de out. 2009, 4ª. feira; menciona o ano 1338 (otomanos chegam ao Bósforo, Istambul), a Hégira (narra a migração de Maomé de Meca para Medina, em 622 d.C.; é o acontecimento histórico central dos primórdios do Islam e que marca o calendário, que é não só um sistema afetivo de contagem de tempo, mas tem importância histórica e religiosa muito profundas), a primavera; e ainda lê frases de um autor Kanizsia 1061: “Torne as coisas mais fáceis para as pessoas. Dê a elas boas notícias, em vez de gerar ódio”. Aqui, o diretor nos situa no tempo, no espaço, no sistema religioso e em valores. Não nos estará dizendo do desejo de Paz, também presente nos muçulmanos, a despeito de acontecimentos e imagens transmitidas? A pensar…

Pai e filho conversam: “Cuide de seus sapatos. São únicos.”/“Pai, sonhei que estava sob uma árvore, sentado.”/“Filho, não espalhe seus sonhos; sussurre-os; não os conte a ninguém.” E saem pela floresta; pai introduz o filho no que conhece de seu ofício e da natureza; filho ouve e pergunta; clima afetivo e terno; filho também cuida do pai, já acostumado com sua doença, e sem parar de olhar a natureza (vê o cervo). Filho vai para a escola: tem um guizo no seu sapato (será sempre localizado); o falcão, ave que vê tão longe e que com seu olhar atravessa distâncias, é seu guia no caminho. Ler, em aula, será: “O leão e o camundongo”; “A águia e a tartaruga” – o grande e o pequeno, o rápido e o lento… Conseguirá Yusuf ler e ser? Conseguirá vencer a si mesmo? É o drama que lhe cabe. Ele quer ler; levanta timidamente o dedo, mas não é visto; quer ser condecorado, quer ser e ter identidade junto ao grupo; não quer ser apenas aquele que olha, pela vidraça, a brincadeira dos outros. Insiste, levanta o dedo para ler… mas não consegue. Que emoção nos transmite ao olhar o vidro em que estão as fitas vermelhas! Tão longe, tão alto, tão inatingível! A mãe, preocupada, leva-o para ser abençoado pelo “iman” (equivalente a padre ou pastor da comunidade). A cumplicidade pai-filho: o pai toma, por ele, o copo com leite que ele não gosta; no final do filme, ele toma o copo com leite, como oferta e tentativa de diminuir a tristeza da mãe. Vemos Yusuf se debatendo com as vicissitudes dos sentimentos. Tem ciúme do pai: o que é que ele deu a seu primo, que não deu a ele? Vive a vingança: faz a troca de cadernos. E ainda a culpa e a reparação: leva o veleiro-miniatura para o primo doente. O pai precisa ir longe e encontrar novos lugares para por as colméias (vivem do mel); o filho quer ir com o pai, mas o pai lhe dá o lugar de cuidador da mãe. E assim será! Frente ao fato inelutável, Yusuf retoma seu guia falcão, o sonho sonhado e sussurrado ao pai, e senta-se embaixo da árvore… Ganha seiva da fonte!

 

O filme é o delicado “vir-a-ser” de uma criança; é a relação pai-filho, é a relação homem-natureza. É um filme sobre o OLHAR, sobre o valor do VER, TOCAR, SENTIR. É um filme sobre os afetos, as tradições e a importância da vida em comunidade. Em tempos de globalização e de tantas teorias psico-pedagógicas, o filme vai mostrar que o que vale, mesmo, é a solução de cuidado ao que é específico e sempre será particular e único: a criança em sua debilidade e necessidade dos pais e professores; jovens e velhos, homem e mulheres, com alegria, e na simplicidade dos trajes típicos, dançam na grande Bayram (festa nacional, religiosa ou não); mulheres que se ajudam e juntas oram, reverenciando tradições e costumes.

 

E Alemanha premia a Turquia (Urso de Ouro). E os laços se estreitam?! Tomara!

 


Maria Teresa Moreira Rodrigues

Psicanalista – Espiritualidade Inaciana

Redação

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