Da Rede Brasil Atual
Rebeldia e tradição conviveram em sítio no Crato, sul do Ceará
Alternativa ao latifúndio, à exploração e à diferença de classe, a comunidade liderada pelo beato José Lourenço, no Ceará de um século atrás, punha em prática o discurso da igualdade
Por: Cida de Oliveira, Rede Brasil Atual Publicado em 11/03/2011, 19:05
Última atualização em 13/03/2011, 08:54
Sobreviventes do sítio Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no Crato, em foto exposta em capela no local (Foto: Domínio Público)
São Paulo – Ao mesmo tempo em que surgia a política do café com leite, que alternava na Presidência da República representantes da elite agropecuária paulista e mineira, o beato negro José Lourenço formava uma comunidade cooperativa que cultivava frutas, cereais, hortaliças e algodão no sítio Baixa D’Antas. A propriedade, localizada na cidade do Crato, ao sul do Ceará, fora cedida pelo padre Cícero Romão Batista. Era o ano de 1894. Tudo ia bem até 1921, quando o boato de que um boi estava sendo adorado pelos camponeses levou Lourenço à prisão por quase um mês.
Naquela época havia uma cruzada contra o fanatismo na região, de cunho religioso e político. Apesar de seu carisma, que atraía romarias de vários estados nordestinos à vizinha Juazeiro do Norte, o Padim Ciço, eminência parda na política cearense, estava na mira de investigações da Santa Sé. Em 1889, enquanto ele celebrava uma missa, a beata Maria de Araújo não teria deglutido a hóstia consagrada, supostamente transformada em sangue. O fato teria se repetido outras vezes e logo os fieis entenderam se tratar de um milagre de derramamento do sangue de Jesus Cristo. A história se espalhou e desagradou o Vaticano, que cassou a ordenação do sacerdote.
O sítio logo foi vendido e os camponeses foram expulsos pelo novo proprietário. Seguiram então para o sítio do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no Crato, que também pertencia ao padre. Famílias de todo o Nordeste, a maioria vindas do Rio Grande do Norte e de Alagoas, passaram a viver de trabalho e oração, produzindo de maneira cooperativa e autossuficiente, armazenando a produção para distribuição conforme a necessidade de cada família. Do Ceará não tinha muitas. O Padre Cícero não era bem visto por parte dos cearenses devido a suas alianças políticas com os coronéis.
Em 1932, quando houve uma grande seca e o governo implantou campos de concentração para impedir a ida de retirantes para a capital Fortaleza (o episódio é tema de reportagem da edição 57 da Revista do Brasil), o Caldeirão acolheu muitos desses flagelados. A irmandade, até então pequena, praticamente dobrou de tamanho. Mais do que água e comida, o que atraía pessoas para lá era a religião. “Muitos que estavam ali até tinham terras, mas queriam viver conforme entendiam ser a vontade divina”, destaca Ramos. “Até porque se miséria explicasse a criação de núcleos como esse, teríamos hoje em dia vários espalhados pela periferia das grandes cidades”.
Embora localizado no Crato, o sítio poderia ser considerado uma comunidade de Juazeiro. Simbolicamente, seu líder era o padre Cícero, de quem José Lourenço era devoto. Em 1934, com a morte do sacerdote, muitos fiéis que faziam romaria para Juazeiro enxergaram na irmandade a continuação de Juazeiro. O movimento migratório para lá cresceu muito e passou a chamar a atenção das autoridades. Tanto que em 1936 os camponeses foram expulsos por forças militares. Para o estado, muita gente junta daquela maneira significava um movimento perigoso. Lembrava Canudos.
No dia 11 de setembro de 1936, as forças militares cearenses invadiram o sítio. O beato José Lourenço já estava escondido nas matas da Chapada do Araripe, onde ficaria até o início de 1938. Os moradores da comunidade foram expulsos, a maioria indo viver na mata, em acampamentos precários. Os mais de 400 casebres da irmandade, segundo pesquisadores ouviram de familiares de quem viveu lá, foram queimados e a produção agrícola saqueada.
No início de 1937 surgiram rumores de que os camponeses espalhados pelas matas do Araripe atacariam o Crato. A polícia de Juazeiro mandou onze soldados para checar as informações, que acabaram em conflito com os agricultores. Segundos fontes oficiais, morreram o capitão e três praças e cinco dos seguidores de Lourenço. Segundo registros históricos, o então ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, autorizou o voo de três aparelhos do Destacamento de Aviação sobre as matas da Chapada. Era o dia 11 de maio de 1937. Conforme depoimentos de descendentes dos sobreviventes a pesquisadores, cerca de 700 lavradores foram massacrados naquela missão. Depois disso, policiais continuaram, em terra, a perseguir, prender, torturar e matar pessoas que se vestissem com roupas pretas, carregando um rosário – características dos seguidores do beato.
Em 1938, Lourenço voltou ao Caldeirão e lá ficou até ser expulso, em 1940, pelos padres salesianos. Seguiu então para Exu, cidade pernambucana localizada do outro lado da Chapada. Ali formou outra comunidade, no sítio União. Morreu em fevereiro de 1946, vitima de peste bubônica.
Regis Lopes enxerga várias diferenças entre o Caldeirão do Crato e Canudos. Para ele, a comunidade cearense, rural, era bem menor que o arraial baiano, um núcleo urbano, que no final do século 19 chegou a ter mais de 5 mil pessoas. O professor desconhece a fonte de informações sobre o número de lavradores massacrados que chegariam a mais de 700. Pelo que ouviu em entrevistas, o número era bem menor. Mas não descarta a possibilidade de que isso tenha mesmo acontecido. “Ninguém sabe direito o que aconteceu ali”.
Para o professor de história, o beato era considerado um homem de Deus, líder, benfeitor e conselheiro. E ao contrário de Padre Cícero, que cursou seminário e sempre estudou, Lourenço era analfabeto, forjado pela tradição oral da cultura popular. “A religião, quando não tem alianças com o poder e o capital, se pauta pela sua essência, que é a fraternidade. E a essência cristã é igualitária, contrária ao dinheiro, ao materialismo. Tanto é que 50, 60 anos depois, Leonardo Boff deu visibilidade à Teologia da Libertação, condenada pelo Vaticano”, explica.
Para o professor, é equivocada a frequente idealização desses camponeses, igualando-os aos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os seguidores de Lourenço eram camponeses como quaisquer outros. A liderança fazia a diferença tanto do ponto de vista político como teocêntrico. Quem ia para o Caldeirão só ficava se concordasse com as regras impostas pelo beato. Era uma sociedade quase monárquica na qual ele reinava absoluto. Sua legitimidade sagrada vinha como uma imposição religiosa. Quem desobedecia era convidado a deixar o sítio.
“Não tinha como enganar essa estrutura. Havia uma só autoridade. Assim como era com o Antonio Conselheiro”, analisa. Como ele prossegue, nada tem a ver com o MST, um movimento democrático, que realiza assembleias, debates, discussão. “Do ponto de vista político, o MST representa uma luta moderna, democrática. O Caldeirão era um movimento religioso. O ponto central do Caldeirão era a união de pessoas que queriam comungar de ideais religiosos. Só. Não era questão de luta pela terra. Agora, do ponto de vista utópico, de construção de uma sociedade nova, aí eles são semelhantes ao MST e a Canudos”.
A influência política desses beatos, conforme o especialista, ultrapassava fronteiras. Sua liderança se explica pela necessidade universal do ser humano, rico ou pobre, de respostas quanto ao sobrenatural, à morte, e não a questões naturais como o sofrimento trazido pela seca.
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