Categories: NotíciaPolítica

Era uma vez um Governo Aécio* – Pequena narrativa ficcional para se entender a força da injustiça

*Este é um relato ficcional, com juízos igualmente hipotéticos sobre os personagens. Trata-se de um exercício de reflexão a contrapelo, a partir de concepções comuns a certos setores da sociedade brasileira sobre determinadas forças políticas. Não se trata da construção de um discurso de vitimização de Dilma Rousseff, embora, sim, quem escreve tem lado. O lado progressista, de esquerda, de defesa intransigente da democracia e da Constituição. Diz, respeito, sim, à necessidade de compreendermos, defendermos e disseminarmos a ideia de que lutar pela justiça deve ser um feito incondicional, ilimitado por nossas posições políticas – as quais, por outro lado, jamais devem ser anuladas em nome de uma pretensa neutralidade. Pois a justiça, sim, tem lado, e não podemos abdicar dela a depender de quem dela for alijado. É dessa coerência que precisamos. Acima de tudo, a inversão de papéis aqui feita é tanto um convite aos contentes, aos indiferentes e aos “isentos” (ou isentões) a respeito da aprovação da admissibilidade do Impeachment ocorrida no último Domingo, como para nós mesmos, que provavelmente achamos que um cenário como o abaixo jamais ocorreria. Mas e esse ocorresse, de alguma forma, com relação a um adversário nosso? Que faríamos? Que podemos aprender com a injustiça que ocorreu?

Muitas vezes, para termos uma dimensão mais clara do que é a injustiça, é preciso que nos coloquemos no lugar do outro, ou que invertamos o raciocínio que estamos adotando. Trata-se de estratégias voltadas a fazer com que nos sensibilizemos, com que percebamos a validade do ponto de vista de quem, por mil razões, não concordamos. Mais fundamental ainda é adotar essa técnica quando estamos em uma situação na qual nos encontramos com raiva, quando nos vemos como prejudicados pela pessoa com a qual estamos lidando; ou, até mesmo, nos falta imparcialidade para avaliar uma situação ou uma opinião porque a discordância que temos com as ideias desse outro é forte demais.

Pois bem. Imaginemos, por um instante, que estamos em 2007. O novo Presidente da República é o promissor Aécio Neves, após uma vitoriosa campanha contra Lula, ainda abalado pelo escândalo do Mensalão. No entanto, o PSDB, partido de Aécio, obtém performance decepcionante na Câmara. O PT, por outro lado, apesar de perder o governo, consegue expressiva maioria no Legislativo. Seu grande articulador, o Deputado José Dirceu, é réu em uma série de processos relacionados à compra de votos de Congressistas. Também são descobertas contas bancárias em paraísos fiscais contendo dezenas de milhões de dólares. No entanto, o Supremo Tribunal Federal permanece silente, graças às intervenções do juiz Enrique Lewandowski, aparentemente ligado ao Partido dos Trabalhadores.

Enquanto isso, a Polícia Federal atua em uma grande investigação a respeito de desvios bilionários de recursos na Petrobrás. Doleiros e operadores do esquema são presos e, para serem soltos e terem a pena consideravelmente reduzida, fazem delações. Contudo, parecem prosperar, do ponto de vista da continuidade das operações especiais e do encaminhamento de inquéritos pelo Ministério Público ao Judiciário apenas aquelas denúncias que envolvem nomes do PSDB: José Serra, Geraldo Alckmin, Tasso Jereissati. Outras, que citam figuras influentes do PT, como Aloisio Mercadante, Marta Suplicy e José Genoino, são engavetadas, mesmo quando são apresentados documentos comprobatórios consideravelmente mais substanciosos.

José Dirceu, habilidoso, vence a eleição para a Presidência da Câmara, impondo uma grande derrota ao Governo. O PT, nunca satisfeito por ter perdido por tão pouco as eleições, faz uma oposição intransigente. Aprova pautas-bomba, bloqueia medidas saneadoras propostas pelo governo de Aécio Neves, pede a recontagem dos votos no Tribunal Superior Eleitoral, e ameaça, sem ter provas aparentes, que entrará com um pedido de Impeachment. Aécio, no entanto, entende que não cabe negociar com essas forças de oposição, muitas delas largamente ímprobas. Quer tocar o seu governo, quer implementar políticas públicas. Afinal, sobre ele não recai nenhuma acusação pessoal de corrupção.

Aécio, contudo, faz um governo ruim. Muito ruim. Adota uma série de medidas econômicas confusas, que se anulam, e confundem as expectativas do mercado. Rapidamente, perde parte do apoio consubstanciado nas urnas. O PT, arrivista, convoca uma série de manifestações pela deposição de Aécio. Não há motivo claro para tanto, na verdade: os tradicionais movimentos sindicais, o barulhento MST e o transgressor movimento de luta por moradia passam a ocupar as principais vias das grandes cidades, enquanto os jovens invadem reitorias de universidades e diretorias de ensino por todo o país. A mídia, largamente financiada pelo governo Lula e dominada por expoentes ligados ao PT, como os comentaristas Franklin Martins e Teresa Cruvinel, incentiva os atos de protesto, fazendo grandes coberturas televisivas e exaltando a vivacidade, a alegria e a jovialidade dos insatisfeitos.

O ano passa, e as insurgências perdem força. A economia, contudo, continua patinando. O Tribunal de Contas da União, consideravelmente aparelhado por Ministros ligados ao petismo, rejeita as contas de Aécio. O motivo é uma tecnicalidade que nunca havia sido declarada como irregular pelo órgão: as chamadas “pedaladas fiscais”, uma tecnologia de gestão na qual, em explicação simples, os bancos públicos fazem pagamentos no âmbito de programas sociais de forma provisória, por conta própria, caso o depósito inicial feito pelo Tesouro para tanto não seja o suficiente para cobrir a demanda – pensemos em programas de assistência social e financiamento estudantil, por exemplo. Depois, é claro, esse eventual descompasso é compensado. Era uma prática antiga, a bem da verdade: Lula a utilizara constantemente em seu governo. Agora, contudo, o TCU a declarava ilegal.

O mais grave, para além da rejeição, em si, das contas, era o fato de que o Tribunal lançaria normativo convalidando o estabelecimento dessa prática como irregular, mas não somente para exercícios futuros, e sim de forma a considerar o ano cujas contas se analisava, anterior ao momento em que se emitia a determinação. Na prática, era como se os cidadãos brasileiros tivessem abastecido seus carros com gasolina ao longo de um ano, como uma prática corriqueira de há muito tempo, e no momento seguinte o governo decidisse deliberar pela proibição, considerando que o “impacto ambiental” do uso de combustíveis fósseis atingiu um limite “elevado demais”. Mas a proibição valerá do ano anterior em diante, e não do ano seguinte, de tal forma que todos os que utilizaram gasolina serão pesadamente multados …

Várias e várias novas denúncias atingem o todo-poderoso Presidente da Câmara, José Dirceu. Há considerável pressão para que renuncie, ou que seja cassado pelo Conselho de Ética. O governo, até então cauteloso com relação a Dirceu, decide anunciar que votará contra o petista em um processo desse tipo. Em represália, o Presidente da Cunha opta por aceitar um dos mais de trinta pedidos de Impeachment contra Aécio – outras, por sinal, foram rejeitadas, embora tivessem o mesmo teor. Este, simbolicamente, fora assinado por Marilena Chauí e Bresser-Pereira, ex-fundador do PSDB.

Para piorar, a Justiça e a Polícia Federal decidem sair à caça da grande reserva moral do partido de Aécio, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso. FHC é inicialmente acusado de ter pago pensão ao filho que teve com uma ex-amante por meio de uma Offshore. As provas, no entanto, não são consistentes. Depois, é investigado pela aquisição de um sítio em Unaí (MG) por apenas 20 dólares, em parceria com seu sócio Sérgio Motta. Basicamente, o ex-Presidente era acusado de obter alguma vantagem pessoal em troca de tráfico de influência em nome da empresa Camargo Corrêa, a partir do fato de que a construtora fizera um aeroporto na vizinhança desse imóvel. Adicionalmente, uma delação premiada feita por Aloysio Nunes, Senador tucano preso por obstrução da justiça no caso Petrobrás, ainda tentou conectar diretamente o Presidente Aécio e FHC na gestão e no recebimento de propinas referentes a tal escândalo.

FHC busca esclarecer as controvérsias, mas subitamente é conduzido coercitivamente para depor, em uma sala do Aeroporto de Congonhas. Cardoso não havia sido intimado previamente e, registre-se, o processo ainda se encontrava na fase de inquérito. Como em outras investigações envolvendo políticos do PSDB, os depoimentos foram vazados. Nada de significativo foi registrado, mas a imagem do ex-Presidente, cotado como um forte candidato para a eleição de 2010, ficou razoavelmente prejudicada.

Por sinal, embora ausentes os fatos que poderiam efetivamente complicar a situação de FHC, havia o burburinho nos meios de comunicação de que ele poderia ser preso a qualquer momento. Aécio, com o governo em frangalhos, sem capacidade de articulação com Congresso e possivelmente por entender que o ex-Presidente estava sendo perseguido injustamente por um juiz inexpressivo de primeira instância em busca de fama momentânea, resolveu nomeá-lo como Ministro-Chefe da Casa Civil. Era, quem sabe, uma última cartada de seu governo, uma busca de ânimo, de retorno, quem sabe, às épocas áureas do Plano Real.

Mas FHC sequer conseguiu assumir a pasta. Luis Barroso, outro Ministro petista no STF, barrara sua posse. Para agravar ainda mais o cenário, escutas telefônicas contendo conversas entre ele e o Presidente Aécio foram gravadas pela Polícia Federal e divulgadas para a imprensa pela justiça. Em cadeia nacional, foram apresentados diálogos os quais, basicamente, expunha-se palavrões e opiniões pessoais do ex-Presidente sobre aliados e órgãos públicos. Significativo era o fato de que, na prática, os grampos ocorreram com relação não apenas a FHC, mas também a seus advogados; também ocorreram com relação a um Presidente da República, embora um juiz de primeira instância não tenha competência legal para tanto; e continuaram a ser feitos após a suspensão da determinação legal. Os conteúdos dos diálogos não eram significativos, mas a imprensa petista se ateve a lê-los, como num folhetim, atiçando a opinião pública contra FHC e Aécio. Houve, ainda, uma pressão midiática no sentido de considerar que ali ficaria claro que Aécio nomeara FHC para que este escapasse da justiça, desconsiderando o fato de que o que ocorreria era basicamente a transferência de seu caso para o STF – o qual julgara com rigor o Mensalão Tucano-Mineiro, ocorrido durante a campanha de Eduardo Azeredo ao Governo de Minas Gerais, em 1998 –, numa triste confusão entre “prerrogativa de foro” e “imunidade parlamentar”.

Por certo, toda essa pressão desestabilizou ainda mais o governo de Aécio, incapaz de montar maioria na Comissão que avaliaria o Relatório de Impeachment na Câmara. Embora o Advogado-Geral da União, Miguel Reale Jr., apresentasse uma brilhante defesa contra o relatório do Deputado Anthony Garotinho (do PR, aliado ao PT), que referendava a tese do Impeachment, o governo foi derrotado. No Plenário, o Presidente Dirceu manobrava continuamente contra Aécio e o PSDB. Optara, enfim, por colocar o processo de votação do Impeachment para um Domingo, dia pré-agendado para a realização de manifestações de esquerda, e momento adequado para uma cobertura da imprensa capaz de pressionar e constranger os deputados em favor do Impeachment. O STF permanecera mudo a respeito da situação de Dirceu.

Nos bastidores, conspirava abertamente em favor da aprovação do impedimento de Aécio o seu próprio vice-presidente, Michel Temer (PMDB). Temer forjara com Dirceu uma aliança de conveniência, a qual garantia a um a condução rápida do processo de Impeachment e, a outro, a anistia com relação às acusações sofridas no Conselho de Ética da Câmara. Adicionalmente, acordava-se pela colocação de freios nas operações especiais desenvolvidas pela Polícia Federal, as quais poderiam alcançar mais fortemente, ao longo do tempo, petistas, pmdbistas e as forças fisiológicas da Câmara.

O empreendimento teve sucesso: no Impeachment, todo o baixo clero aliou-se a Temer e Dirceu. Discursos em nome da família e contra a corrupção foram feitos. Nas ruas, parte da população se regozijava. Era o fim do descalabro da gestão de Aécio: fim do caos econômico, fim da roubalheira. O tucano sairia do governo em meio a uma situação sui generis: sobre ele, não recaía nenhuma denúncia pessoal de corrupção; sua administração fora a que mais investiu no combate à malversação de recursos públicos e na concessão à autonomia para o trabalho dos agentes públicos; o grande fato motivador de sua deposição, concretamente, nem era um crime imputável a um Presidente da República, já que era ato administrativo de nível Ministerial, nem se configurava, propriamente, como um crime, já que fora tratado como prática legal de gestão por todas as instâncias competentes sobre a matéria ao longo de toda a história da República. Os 16 governadores que executaram o mesmo expediente das pedaladas, por sinal, continuaram no poder.

Mas, nas ruas, parece que tudo o que houve foi alívio. Aécio e a ideologia tucana foram, enfim, removidas do poder. Ele errara, errara feio, ao distanciar-se das plataformas que o elegeram, ao afastar-se do diálogo com o Congresso, ao não conseguir fornecer respostas para a crise econômica. Mas, no final, não importava que a deposição, feita com base em mero subterfúgio, eventualmente afrontasse a Constituição e a soberania popular?

Quem sabe. Mas a injustiça é dessas coisas que só nos tocam se nós a sentirmos na pele. Eu realmente me pergunto se esse é um afeto que está à disposição, para ser realmente sentido, por cidadãos brasileiros do nosso tempo. Pois o que provavelmente nos torna mais humanos é a capacidade de nos sensibilizarmos com o outro, com o amor à diferença que existe entre cada um de nós e que nos torna, nessa igualdade peculiar, excepcionais em nossa genialidade. Humanidade. Pois o contrário da igualdade não é a diferença, que lhe enriquece e lhe complementa, mas a desigualdade. Não há outro lugar que não em um ambiente democrático, realizado em uma esfera pública plenamente ocupada, rica, plural e múltipla, que esse senso de querer e se importar possa efetivamente prosperar. De outra forma, no privatismo, a democracia é um mal entendido, a desigualdade é um direito e um valor, a política é o império do particular que não me pertence, que não representa os meus interesses mais estritos e pessoais e, portanto, é suja. O público, aí, é de ninguém. Mas não existe vazio de poder. Toda lacuna é preenchida. O resultado depende de quem a ocupa.

Então, a injustiça continua a existir, mesmo que não nos importemos com ela – até porque, efetivamente, pode ocupar o espaço público quem realmente acredita que a política é o domínio do privado, do voto pela família (a minha, jamais a do povo, abstratamente presente na Constituição). A injustiça é injusta independentemente da ideologia que professarmos, simples assim. E ela, a injustiça, recai sobre nós. Sobre vocês. Mas tentemos experimentar sair de nós mesmos, de nossa imediaticidade. A tragédia do golpe é nossa. Nós é que fomos golpeados. Nós, e não simplesmente Dilma. Você, que acha que “venceu” nessa votação, está junto nessa. Talvez, se invertermos um pouco as coisas, isso fique claro, como nesse exercício acima. Que um dia compreendamos e sejamos capazes de fazer aos outros compreender a dimensão desse achaque. Pois esse peso ainda recairá pesadamente por sobre nós, independentemente do que acreditarmos sobre o que ocorreu neste Domingo, 17 de Abril.

Crédito da Imagem: https://fcassio.files.wordpress.com/2015/10/dois-pesos-duas-medidas-cc3b3pia-620×350.jpg?w=676

 

Redação

Redação

Recent Posts

Comunicação no RS: o monopólio que gera o caos, por Afonso Lima

Com o agro militante para tomar o poder e mudar leis, a mídia corporativa, um…

4 horas ago

RS: Por que a paz não interessa ao bolsonarismo, por Flavio Lucio Vieira

Mesmo diante do ineditismo destrutivo e abrangente da enchente, a extrema-direita bolsonarista se recusa a…

5 horas ago

Copom: corte menor não surpreende mercado, mas indústria critica

Banco Central reduziu ritmo de corte dos juros em 0,25 ponto percentual; confira repercussão entre…

5 horas ago

Israel ordena que residentes do centro de Rafah evacuem; ataque se aproxima

Milhares de pessoas enfrentam deslocamento enquanto instruções militares sugerem um provável ataque ao centro da…

6 horas ago

Governo pede ajuda das plataformas de redes sociais para conter as fake news

As plataformas receberam a minuta de um protocolo de intenções com sugestões para aprimoramento dos…

7 horas ago

As invisíveis (3), por Walnice Nogueira Galvão

Menino escreve sobre menino e menina sobre menina? O mundo dos homens só pode ser…

9 horas ago