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Flagrantes da resistência às Ditaduras

O Cavaleiro da Esperança – Vida de Luís Carlos Prestes, obra de Jorge Amado, e as Memórias, de Gregório Bezerra – que estão de volta às livrarias brasileiras – recortam a história política do País

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O desafio maior diante desses dois livros incontornáveis na história do Brasil é entender as decisões políticas que Gregório e Prestes tomaram, separando-as das admiráveis qualidades pessoais deles. Compare-se apenas as vidas de Gregório e de Prestes com aquelas dos generais – antigos “tenentes”, colegas do Cavaleiro da Esperança – que promoveram, de 1964 a 1985, o terrorismo de Estado e os crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar no País.

de O Estado de S. Paulo – 13 de agosto de 2011

 

Paulo Sérgio Pinheiro

 

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Divulgação
Prestes (em primeiro plano) e Bezzera (de terno escuro), em 1945, num comício do PCB, no Recife

 

O Cavaleiro da Esperança – Vida de Luís Carlos Prestes, de Jorge Amado, foi publicado em 1942, na época do Estado Novo, e Memórias, de Gregório Bezerra, em 1979, durante a vigência da ditadura militar no Brasil. O problema com a leitura de O Cavaleiro… é haver tantos Prestes na sua longeva biografia que sempre existe o risco de lermos o livro pelos Prestes que virão depois. Quanto a Amado, Mario Vargas Llosa disse, certa vez, que o escritor baiano era uma espécie de Dorian Gray, que se transformava em cada livro, fazendo verdadeiras festas sensuais e literárias. Até em O Cavaleiro… ele mantém a marca registrada de seus romances, colocando no livro pitadas de música, dança, macumba – e mulheres. As que acompanhavam a Coluna Prestes eram chamadas vivandeiras, às vezes “amor no rastro dos homens””; outras, Anitas Garibaldi redivivas “Nas noites de parada, quando a Coluna se estendia pelas pradarias, como um rio de homens (?) nessas noites, sensual e lânguida, a mulata Onça se rebolava no maxixe dengoso. Dançava para os soldados a dança mais nacional e mais tentadora e mais lasciva”, escreve Amado à página 121. E, na sequência, na 122: “Tia Maria, preta velha e de olhos brilhantes, que morreu dramaticamente, entre tortura (?) e nua diante das metralhadoras revolucionárias, invocava os deuses negros das macumbas”.
Em O Cavaleiro… como um underpainting, debaixo da pintura, Amado demarca-se no campo ideológico e político brasileiro e ajusta-se aos cânones do realismo-socialista, em voga em Moscou. Acerta contas com escritores como Coelho Neto; ataca os modernistas paulistas como um “movimento ligado aos oligarcas”; execra os integralistas e simpatizantes, como o “donzelo” Octavio de Faria. Exalta os “tenentes” da década dos 1920, como Juarez Távora, “puro, honesto (…) seu coração de gigante bom não acreditando na maldade humana”, Juracy Magalhães, Eduardo Gomes, Cordeiro de Farias, futuros generais da ditadura de 1964.

Na mais pura vertente do culto da personalidade stalinista, Amado proclama que “todo o povo do Brasil (…) fez o milagre de heroísmo que é Luís Carlos Prestes, P no peito dos negros, no coração dos soldados da Coluna, luz no coração dos homens, operários. Marítimos, camponeses, poetas, sambistas, tenentes e capitães, romancistas e sábios. Luz no coração dos homens, das mulheres também, estrela da esperança. Um povo escravo precisando do seu Herói”. Mas o constrangedor viés autoritário stalinista de O Cavaleiro… não foi em vão: Amado recebeu com justiça o Prêmio Stalin, em 1951.

Em O Cavaleiro…, os eventos-chave são a Coluna Prestes, a insurreição de 1935 e a repressão do Estado Novo. Na chochíssima história da Primeira República, a Coluna Prestes foi um evento estelar: entre 1926 e 1927, durante um ano e quatro meses os 1.500 e no final 800 revoltosos percorrem cerca de 25.000 quilômetros, obrigando o governo brasileiro a lançar mão de forças locais e recursos não convencionais, como Lampião e os cangaceiros. Quase três vezes mais longa que a Longa Marcha de Mao Tsé-tung em menos de um ano, num terreno mais acidentado, mas que termina por implantar um governo no Norte da China. A Coluna termina exilada na… Bolívia – e se dispersa. Em maio de 1930, Prestes contatado para liderar a revolução conclama um “governo de todos os trabalhadores baseados nos conselhos de trabalhadores da cidade e do campo, soldados e marinheiros”. E em 1935, ele já no Partido Comunista do Brasil, PCB, subestimando a união das forças armadas e o fortalecimento do Estado depois da revolução de 1930, lança a revolta militar comunista no Rio, sem qualquer articulação popular – todos fragorosamente derrotados e barbaramente reprimidos.

Pela primeira vez na obra de um ficcionista foi escancarada com precisão a repressão brutal e bestial, ainda sob a democracia em 1935, bem antes do Estado Novo, que sofreram Prestes, sua mulher Olga Benário – importante quadro da Internacional Comunista, o Komintern, deportada grávida por Vargas para a Alemanha para ter morte certa, como judia e comunista que era, num campo de extermínio -, seus companheiros da revolta de 1935, e os agentes do Komintern enviados ao Rio. O Cavaleiro… foi crucial para a mobilização internacional para libertar a filha de Prestes e de Olga, Anita Leocádia, com 14 meses, presa com sua mãe em Barnimstrasse. O escritor André Malraux, engajado na causa, posou em Paris ao lado de D. Leocádia, a indômita mãe de Prestes.

O golpismo tenentista se conjugou com a estratégia oportunista do Komintern de apoiar uma revolução no Brasil porque correspondia a uma visão militarizada da insurreição nos países considerados “semicoloniais”. Se Prestes fora capaz de todos os feitos decantados por Jorge Amado, sem o programa e as ideias comunistas, o que não faria armado do marxismo soviético! A insurreição de 1935 foi o reencontro dos revoltosos das rebeliões dos anos 1920, refratários à revolução de 1930, com o glacê da retórica messiânica do Komintern. Em 1935, Prestes se vale da insurreição militar pretendendo que fosse como a revolução russa de 1917.

Confluência. Uma outra perspectiva sobre a mesma conjuntura está nas Memórias, de Gregório Bezerra, que cobrem o período de 1900 a 1979, desde a infância do incansável combatente, em Pernambuco, seus primeiros anos de militância sindical na década de 1910 e no PCB. Nos 83 anos de sua vida, Bezerra sofreu tortura e prisões desde o começo de sua militância. Ficou preso dez anos, entre 1935 e 1945, por participação na revolta comunista do Recife e depois outros cinco, entre 1964 e 1969, período em que foi torturado e arrastado pelas ruas do Recife, amarrado em cordas, até ser trocado pelo embaixador americano. Não antes de divulgar documento em que condena o sequestro que possibilitou sua libertação.

A confluência de Prestes com Gregório – e com Amado – se dá também no breve período de legalidade do PCB em que Bezerra e o escritor baiano foram deputados e o Cavaleiro, senador na Constituinte de 1946.

As Memórias de Gregório Bezerra têm valor inestimável como visão de dentro da revolução de 1935 sobre a atuação dos comunistas no breve período da legalidade. E ainda mais rara sobre as atividades dos comunistas na clandestinidade, entre 1948 e 1964.

Em 13 de janeiro de 1948, o então deputado Gregório Bezerra foi escolhido para apresentar as despedidas do grupo na última sessão do congresso a que os parlamentares comunistas compareceram. O registro eleitoral do partido fora cancelado em maio de 1947 e os parlamentares comunistas tiveram cassados seus mandatos. A história da anulação do PCB é muito bem reconstituída por Gregório. Foi uma chicana jurídica promovida pelo governo, no novo contexto da guerra fria, dissimulando uma política de repressão popular em curso. A orquestração do fechamento do PCB, como bem mostra Bezerra, pode ser detectada desde o início do governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950).

As Memórias são uma narrativa tensa, precisa. O heroísmo irrompe menos da personalidade de Gregório que dos feitos em si mesmos. A edição é bem cuidada, como a que traz O Cavaleiro…, com fotos raras, anexos e cronologia. Índice onomástico referido às páginas e aparato crítico de notas, além das originais, teriam ajudado a melhor compreender o contexto em que os livros foram escritos. De qualquer modo, essas reedições são muito bem-vindas. O Cavaleiro da Esperança e as Memórias permitem rever a atuação dos comunistas em toda a República, tanto da rara perspectiva de Gregório, autêntico militante popular, de participante da rebelião de 1935 até a clandestinidade nos anos 1960, em contraste com a do gaúcho Prestes, militar, herói da Coluna e dirigente comunista – ambos, dignos opositores da ditadura de 1964.

O desafio maior diante desses dois livros incontornáveis na história do Brasil é entender as decisões políticas que Gregório e Prestes tomaram, separando-as das admiráveis qualidades pessoais deles. Compare-se apenas as vidas de Gregório e de Prestes com aquelas dos generais – antigos “tenentes”, colegas do Cavaleiro da Esperança – que promoveram, de 1964 a 1985, o terrorismo de Estado e os crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar no País.

 

PAULO SÉRGIO PINHEIRO É PESQUISADOR ASSOCIADO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA, DA USP, E AUTOR DE ESTRATÉGIAS DA ILUSÃO. A REVOLUÇÃO MUNDIAL E O BRASIL, 1922-1935 (COMPANHIA DAS LETRAS, 1992). FOI SECRETÁRIO DE ESTADO DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

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