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O desafio maior diante desses dois livros incontornáveis na história do Brasil é entender as decisões políticas que Gregório e Prestes tomaram, separando-as das admiráveis qualidades pessoais deles. Compare-se apenas as vidas de Gregório e de Prestes com aquelas dos generais – antigos “tenentes”, colegas do Cavaleiro da Esperança – que promoveram, de 1964 a 1985, o terrorismo de Estado e os crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar no País.
de O Estado de S. Paulo – 13 de agosto de 2011
Paulo Sérgio Pinheiro
Na mais pura vertente do culto da personalidade stalinista, Amado proclama que “todo o povo do Brasil (…) fez o milagre de heroísmo que é Luís Carlos Prestes, P no peito dos negros, no coração dos soldados da Coluna, luz no coração dos homens, operários. Marítimos, camponeses, poetas, sambistas, tenentes e capitães, romancistas e sábios. Luz no coração dos homens, das mulheres também, estrela da esperança. Um povo escravo precisando do seu Herói”. Mas o constrangedor viés autoritário stalinista de O Cavaleiro… não foi em vão: Amado recebeu com justiça o Prêmio Stalin, em 1951.
Em O Cavaleiro…, os eventos-chave são a Coluna Prestes, a insurreição de 1935 e a repressão do Estado Novo. Na chochíssima história da Primeira República, a Coluna Prestes foi um evento estelar: entre 1926 e 1927, durante um ano e quatro meses os 1.500 e no final 800 revoltosos percorrem cerca de 25.000 quilômetros, obrigando o governo brasileiro a lançar mão de forças locais e recursos não convencionais, como Lampião e os cangaceiros. Quase três vezes mais longa que a Longa Marcha de Mao Tsé-tung em menos de um ano, num terreno mais acidentado, mas que termina por implantar um governo no Norte da China. A Coluna termina exilada na… Bolívia – e se dispersa. Em maio de 1930, Prestes contatado para liderar a revolução conclama um “governo de todos os trabalhadores baseados nos conselhos de trabalhadores da cidade e do campo, soldados e marinheiros”. E em 1935, ele já no Partido Comunista do Brasil, PCB, subestimando a união das forças armadas e o fortalecimento do Estado depois da revolução de 1930, lança a revolta militar comunista no Rio, sem qualquer articulação popular – todos fragorosamente derrotados e barbaramente reprimidos.
Pela primeira vez na obra de um ficcionista foi escancarada com precisão a repressão brutal e bestial, ainda sob a democracia em 1935, bem antes do Estado Novo, que sofreram Prestes, sua mulher Olga Benário – importante quadro da Internacional Comunista, o Komintern, deportada grávida por Vargas para a Alemanha para ter morte certa, como judia e comunista que era, num campo de extermínio -, seus companheiros da revolta de 1935, e os agentes do Komintern enviados ao Rio. O Cavaleiro… foi crucial para a mobilização internacional para libertar a filha de Prestes e de Olga, Anita Leocádia, com 14 meses, presa com sua mãe em Barnimstrasse. O escritor André Malraux, engajado na causa, posou em Paris ao lado de D. Leocádia, a indômita mãe de Prestes.
O golpismo tenentista se conjugou com a estratégia oportunista do Komintern de apoiar uma revolução no Brasil porque correspondia a uma visão militarizada da insurreição nos países considerados “semicoloniais”. Se Prestes fora capaz de todos os feitos decantados por Jorge Amado, sem o programa e as ideias comunistas, o que não faria armado do marxismo soviético! A insurreição de 1935 foi o reencontro dos revoltosos das rebeliões dos anos 1920, refratários à revolução de 1930, com o glacê da retórica messiânica do Komintern. Em 1935, Prestes se vale da insurreição militar pretendendo que fosse como a revolução russa de 1917.
Confluência. Uma outra perspectiva sobre a mesma conjuntura está nas Memórias, de Gregório Bezerra, que cobrem o período de 1900 a 1979, desde a infância do incansável combatente, em Pernambuco, seus primeiros anos de militância sindical na década de 1910 e no PCB. Nos 83 anos de sua vida, Bezerra sofreu tortura e prisões desde o começo de sua militância. Ficou preso dez anos, entre 1935 e 1945, por participação na revolta comunista do Recife e depois outros cinco, entre 1964 e 1969, período em que foi torturado e arrastado pelas ruas do Recife, amarrado em cordas, até ser trocado pelo embaixador americano. Não antes de divulgar documento em que condena o sequestro que possibilitou sua libertação.
A confluência de Prestes com Gregório – e com Amado – se dá também no breve período de legalidade do PCB em que Bezerra e o escritor baiano foram deputados e o Cavaleiro, senador na Constituinte de 1946.
As Memórias de Gregório Bezerra têm valor inestimável como visão de dentro da revolução de 1935 sobre a atuação dos comunistas no breve período da legalidade. E ainda mais rara sobre as atividades dos comunistas na clandestinidade, entre 1948 e 1964.
Em 13 de janeiro de 1948, o então deputado Gregório Bezerra foi escolhido para apresentar as despedidas do grupo na última sessão do congresso a que os parlamentares comunistas compareceram. O registro eleitoral do partido fora cancelado em maio de 1947 e os parlamentares comunistas tiveram cassados seus mandatos. A história da anulação do PCB é muito bem reconstituída por Gregório. Foi uma chicana jurídica promovida pelo governo, no novo contexto da guerra fria, dissimulando uma política de repressão popular em curso. A orquestração do fechamento do PCB, como bem mostra Bezerra, pode ser detectada desde o início do governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950).
As Memórias são uma narrativa tensa, precisa. O heroísmo irrompe menos da personalidade de Gregório que dos feitos em si mesmos. A edição é bem cuidada, como a que traz O Cavaleiro…, com fotos raras, anexos e cronologia. Índice onomástico referido às páginas e aparato crítico de notas, além das originais, teriam ajudado a melhor compreender o contexto em que os livros foram escritos. De qualquer modo, essas reedições são muito bem-vindas. O Cavaleiro da Esperança e as Memórias permitem rever a atuação dos comunistas em toda a República, tanto da rara perspectiva de Gregório, autêntico militante popular, de participante da rebelião de 1935 até a clandestinidade nos anos 1960, em contraste com a do gaúcho Prestes, militar, herói da Coluna e dirigente comunista – ambos, dignos opositores da ditadura de 1964.
O desafio maior diante desses dois livros incontornáveis na história do Brasil é entender as decisões políticas que Gregório e Prestes tomaram, separando-as das admiráveis qualidades pessoais deles. Compare-se apenas as vidas de Gregório e de Prestes com aquelas dos generais – antigos “tenentes”, colegas do Cavaleiro da Esperança – que promoveram, de 1964 a 1985, o terrorismo de Estado e os crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar no País.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO É PESQUISADOR ASSOCIADO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA, DA USP, E AUTOR DE ESTRATÉGIAS DA ILUSÃO. A REVOLUÇÃO MUNDIAL E O BRASIL, 1922-1935 (COMPANHIA DAS LETRAS, 1992). FOI SECRETÁRIO DE ESTADO DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
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