História, política e loucura: A intervenção na Colônia Monte Pascoal, esse nome se justifica face a paisagem que compõe o ambiente….
Sentado num bar, rindo e descontraindo, alguns gritos cessam a conversa de copo. É uma senhora, vestida a farrapos. Ouve-se Guerra do Vietnã, Mao Tsé Tung, Saddam Hussein e Haití. É uma bêbada? Ela só está tomando água.
Incrível como tantas palavras sem nexo comparam a história geral com a atualidade, num ponto de vista totalmente inédito e repleto de uma absoluta verdade em epifania! Ninguém escreveu, ninguém guardou, ninguém nem sequer pôde lembrar. As palavras dirigidas ao vento, no vento se foram. Quantas outras frases de loucos morrem nos ônibus, nas praças, nos manicômios?
As de Stela do Patrocínio não. Era algo impressionante, de completo mistério. Tantas frases, seguidas, cuspidas, vomitadas eram a mais pura arte. Era a poesia, na mais pura entre todas as suas formas, que se proliferava diretamente de sua boca; e mais que isto, um relato tão ultra-realista da realidade de pacientes em hospitais psiquiátricos que a filósofa Viviane Mosé imprimiu nas páginas de Reino dos Bichos e dos animais é o meu nome.
Podemos ver em cada um dos falatórios de Stela marcas de que seus falatórios são, de fato, manifestações artísticas. Tomemos alguns de seus versos:
Eu já falei em excesso em acesso muito e demais
Declarei expliquei esclareci tudo
Falei tudo que tinha que falar
Não tenho mais assunto mais conversa fiada
Já falei tudo
Nos versos acima, há rima interna (“excesso” / “acesso”), assonância em abundância do fonema “/ê/” (“falei”, “excesso”, “em”, “demais”, “declarei”, “expliquei”, “esclareci”) e anáfora do verbo “falar”.
Ainda:
Eu sou seguida acompanhada imitada assemelhada
Tomada conta fiscalizada examinada revistada
Tem esses que são iguaizinhos a mim
Tem esses que se vestem e se calçam igual a mim
Mas que são diferentes da diferença entre nós
É tudo bom e nada presta
Acima há um amplo uso das rimas internas “acompanhada”, “imitada”, “assemelhada”, “tomada”, “fiscalizada”, “examinada” e “revistada”, além da constante presença do fonema /s/ (“sou”, “seguida”, “assemelhada”, “fiscalizada”, “revistada”, “esses”, “são”, “iguaizinhos”, “esses”, “se”, “vestem”, “se”, “calçam”, “são”, “diferentes”, “diferença”, “nós” e “presta”).
Embora seus versos sejam livres como sua mente enferma, digno do conceito de “universalidade” da poesia – isto é – o leitor ter sua própria interpretação da obra independente da intenção do autor. É preciso entender e saber a biografia de Stela para interpretar seus falatórios.
Stela nasceu dia 9 de janeiro de 1941 e começou seu tratamento psiquiátrico aos 15 anos, no Centro Psiquiátrico Pedro II, no bairro de Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, passando pela Colônia Juliano Moreira, na mesma cidade. Seu talento como poetisa de falatórios foi reconhecido a partir de 1986, quando a artista plástica Neli Gutmacher visitou a Colônia para interagir com os internado. Desta forma, a estagiária de Neli gravou em áudio e vídeo seus falatórios, expondo ao público na mostra “Ar Subterrâneo”, no Paço Imperial em 1988. Em 1991 a estagiária de psicologia Mônica Ribeiro de Souza continuou com as gravações dos falatórios de Stela. Ano seguinte Stela é internada com hiperglicemia grave no Hospital Cardoso Fontes, amputa uma de suas pernas, entra em estado de depressão, recusase-se ao tratamento e falece em cerca de dois meses. Em 2001, Viviane Mosé reuniu alguns dos falatórios de Stela do Patrocínio e publicou o livro “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome”, ainda pela Azougue Editorial, o qual o trabalho de Stela foi agraciado com o prêmio Jabuti em 2002.
Mas e quanto ao preconceito de aceitarmos a palavra de um autor que é conhecido como um louco? Foucault explicita que o discurso de um louco não se opõe a razão: ”loucura e razão entram numa relação eternamente reversível que faz com que toda loucura tenha sua razão que a julga e controla, e toda razão sua loucura na qual ela encontra sua verdade irrisória”. O que faz com que nós, segundo Foucault, estejamos inclinados a ouvir seus discursos: “A palavra do louco […] não é mais nula e não-aceita, […] ela nos leva à espreita; que nós aí buscamos um sentido, ou o esboço ou as ruínas de uma obra; e que chegamos a surpreendê-la”. Stela não apenas tomou atenção de alguns, como foi gravada, analisada, e continua sendo objeto de estudos em teses e livros. Porém, mesmo ela, sentia o que é ter de seu discurso “uma separação e uma rejeição”, não evitou que “sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância”. Este sentimento está explicitamente representado em um de seus falatórios-poema:
Eu já não tenho mais voz
Porque já falei tudo o que tinha que falar
Falo, falo, falo, falo o tempo todo
E é como se eu não tivesse falado nada.
A arte de Stela do Patrocínio não eram meros devaneios, era a sua forma de se expressar. As fitas foram gravadas em meados de 1980, no começo da Luta Anti-manicomial, na época, pouco difundida. Sem ter o menor contato com este movimento, suas palavras são nítidas e um testemunho concreto dos males que o tratamento sob reclusão causava aos pacientes, contidos nestes versos abaixo:
Estava com muita saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora vivo no hospital como doente.
O remédio que eu tomo me faz passar mal
Eu não gosto de tomar remédio para ficar
passando mal
Eu ando um pouquinho, cambaleio, fico
Cambaleando,
Quase levo um tombo.
Esta demonstração de verdade, livre de coesão, presente no discurso de Foucault ao anunciar que “pode ocorrer que se lhe atribua […] estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de prenunciar o futuro, o de enxergar com toda a ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber”. Mesmo sem ter contato com teorias psiquiátricas, este falatório-poema afirma, em pleno teor, a ideologia do psiquiatra Franco Basaglia:
Certamente uma das terapias mais importantes para combater a loucura é a liberdade. Quando um homem é livre tem a posse de si mesmo, tem a posse da própria vida, e, então, é mais fácil combater a loucura. […] Quando há possibilidade de se relacionar com os outros, livremente, isso torna-se uma luta contra a loucura.
Tanto os versos de Stela não só disseram “uma verdade escondida”, como prenunciou o futuro, a saber que o presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001, deu fim aos hospícios gerando uma nova era para a psiquiatria no Brasil.
Stela do Patrocínio sabia de sua limitação, sentia seu problema, concordava que sua cabeça não era normal, que não tinha raciocínio, através do mais famoso de seus falatórios:
Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente
Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro.
E realmente não tinha como ser útil, se suas palavras não tivessem entrado na eternidade das páginas pela Viviane Mosé. Os polissíndetos em seus versos, as inversões de frases, as anáforas dos verbos “Fazer” e “Ser”, simplesmente ditados assim, sem pensar em cada palavra, chamaram a atenção, era arte, a mesma da música, do palco, da tela de pintura.
E novamente, os ideais de Foucault explicam porque estes falatórios são objetos de estudo:
Todo este imenso discurso do louco retornava ao ruído; a palavra só lhe era dada simbolicamente, no teatro onde ele se apresentava, desarmado e reconciliado, visto que representava aí o papel de verdade mascarada. (Foucault)
Infelizmente, nem todas estas palavras, proferidas por loucos, nos vêm em forma de arte. Em maioria, são discursos dirigidos a ninguém, ou a todos, como se num monólogo incoeso, por vezes repletos de fundamentos, por vezes não. Dotado da Loucura, o homem tem outra linha de raciocínio, pontos de vistas diversos, completamente diferentes dos que conhecemos e tratamos assuntos. A filosofia de vida destes humanos vai além do que a razão pode traduzir, mas há uma interseção de compreensão. Os discursos dos loucos podem até não ter tanta credibilidade, mas há neles, uma verdade inédita, impassível de ignorar; Erasmo, em Elogio da Loucura, Foucault, em diversos livros como A Ordem do Discurso, Sócrates, em vários ensaios, e muitos outros sábios, nos trouxeram conhecimentos extraordinários a partir deles, e entraram para a História. Ouça o louco ao seu lado, o louco momentâneo de seu cotidiano, o louco dentro de si. Sãos são os que ouvem o que os loucos podem.
BIBLIOGRAFIA:
BASAGLIA, Franco. Psiquiatria Alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo: Editora Brasil Debates, 1982.
FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1995.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos Animais e dos Bichos é o meu nome. Viviane Mosé (org). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.
https://comunicacaoeartes20122.wordpress.com/2013/03/01/stela-do-patrocinio-sao-os-que-ouvem-o-que-os-loucos-podem-saos/