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Legislação nacional dificulta criação de fármacos

Suponhamos que você seja um cientista e quer estudar as propriedades químicas de plantas para descobrir princípios ativos que possam servir para produzir novos medicamentos ou, até mesmo, cosméticos. No Brasil, se essa planta for a Casca de Assacu, por exemplo, utilizada por tribos indígenas da Amazônia no combate a inflamações em geral, úlceras e até tumores, você necessitará de autorização do CGEN (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético). Agora, se for uma planta desconhecida popularmente, nomeada apenas no meio científico, poderá recorrer a autorização do Ibama.

Ocorre que as permissões do Ibama são praticamente automáticas, enquanto que as do CGEN demoram, em média, 11 meses. Além disso, o órgão aprovou apenas 25 pedidos de pesquisa desde 2002, quando foi criado. As dificuldades da bioprospecção no Brasil foram abordadas pela pesquisadora do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), Cecília Nunez, durante o 13º Fórum de Debates Brasilianas.org, realizado no dia 12 de setembro, em São Paulo.

A aprovação de pesquisas pelo CGEN se torna burocrática porque a Medida Provisória (MP) nº 2.186-16/2001, que deu base a sua criação, exige a informação da origem do material genético e, quando for o caso, do conhecimento tradicional guardado por comunidades locais, associado à pesquisa, bem como um contrato de repartição de benefícios com as comunidades que utilizam a planta ou espécie de interesse de estudo.

“A legislação é muito pesada e, em vez de incentivar a pesquisa, só impede que o cientista brasileiro estude as plantas nacionais”, reclama Cecília, ao lembrar que o bioma amazônico é compartilhado por oito países além do Brasil, com a maior parte da floresta (60%). “Assim, você tem vários países que possuem a floresta e permitem a bioprospecção”, completou.

Bioprospecção significa extrair o valor econômico das diferentes espécies de animais e plantas que existem, ou seja, da biodiversidade. Cecília contou que já foi procurada por grupos de pesquisa estrangeiros que lhe pediram apenas informações de quais espécies de plantas tinham os princípios ativos que lhes interessavam para poderem prospectar na Guiana Francesa, território com bioma Amazônico, pertencente à França, mas sem as mesmas burocracias do Brasil.

A pesquisadora foi procurada por duas tribos indígenas, Arara e Xipaia, da região da Volta Grande do Xingu, para que catalogasse e estudasse os princípios ativos das plantas que essas comunidades utilizavam no seu dia a dia. Durante três anos Cecília esperou pela permissão do CGEN. Mas, mesmo com a autorização dos indígenas, o órgão não lhe concedeu o direito de pesquisar, porque as tribos não tinham o registro de suas terras.

“Até um dos líderes de lá, que era analfabeto, aprendeu a escrever o próprio nome para assinar os termos do CGEN. Para ter ideia, entre milhões de documentos, o CGEN me pediu a ata de nomeação do líder da tribo, sabendo que se trata de uma cultura de tradição oral. E ata de nomeação é coisa da cultura ocidental!”.

A pesquisadora disse que as duas comunidades a procuraram porque haviam assistido num programa de televisão que se tivessem o registro das plantas locais conseguiriam, talvez, obter o registro das terras e a homologação do território como Terra Indígena. Ocorre que as tribos estão num espaço que será alagado após a construção da usina de Belo Monte. No final das contas, Cecília conseguiu autorização para fazer apenas uma cartilha explicativa das espécies vegetais, mas impedida de fazer um estudo mais aprofundado para saber a constituição química delas. 

Segundo a Cecília, 99% dos trabalhos de bioprospecção com plantas não chegam à substância ativa, “isso porque durante o fracionamento das substâncias químicas do vegetal, você acaba perdendo a atividade desejada”, explicou. Por essa razão, os vegetais utilizados pelas comunidades são mais interessantes porque a probabilidade de se encontrar princípios ativos de interesse comercial é maior, já que muitas dessas populações utilizam há séculos certos tipos de plantas.

Ainda assim, a legislação brasileira não prejudica tanto as grandes indústrias farmacêuticas, mas sim o pesquisador e os pequenos laboratórios. Voltando ao exemplo da Casca de Assacu, utilizada por tribos indígenas para o combate de inflamações e até mesmo tumores, se uma empresa fizer estudos para descobrir o princípio ativo que possa servir para a cura de cânceres, sem a autorização de todas as tribos indígenas que a utilizam e do CGEN, será criminalmente responsabilizada. Mas, se pesquisar a planta e patentear um princípio ativo para a diabetes estará amparada pela lei, pois as comunidades não tinham conhecimento de que a mesma planta poderia ser usada para tratar a diabetes.

“Assim, muitas das doenças que mais afligem as populações pobres, como malária, leishmaniose, as chamadas negligenciadas, acabam não sendo estudadas pelas grandes empresas, porque essas querem descobrir medicamentos para doenças que dão retorno nas localidades mais desenvolvidas, como diabetes, mal de Parkinson ou mal de Alzheimer. Por outro lado, pesquisadores interessados em descobrir o princípio ativo das doenças negligenciadas teriam que se submeter às exigências do CGEN”, avaliou Cecília.

A pesquisadora destacou que as substâncias naturais descobertas não são utilizadas, mas servem como modelo para a “semi-síntese” de substâncias para se conseguir aumentar a atividade desejada ou diminuir um possível efeito tóxico, em laboratório. “Então, necessariamente, a empresa quer patentear a substância isolada e não a planta”.

Cecília inscreveu um pedido de patente de um princípio para tratar a leucemia, obviamente ela não nos contou o nome da planta que originou a descoberta, mas garante que o vegetal não é popular. “Alguns alunos meus também trabalham com tetrapenos, substância com características antibacterianas, de plantas que não são populares”, completa.

Segundo o pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Nilo Luiz Saccaro Junior, autor do trabalho “Os Desafios da bioprospecção no Brasil”, os ministérios do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia, vinculados ao tema, elaboram um Projeto de Lei para substituir a MP nº 2.186-16/2001. Ainda não há previsão para que ela seja submetida à aprovação do Senado e da Câmara dos Deputados, mas as principais mudanças do PL, submetido por seis meses à consulta pública, são:

– Redução da burocracia para o acesso a biodiversidade quando para fins de pesquisa científica. Nesse caso as licenças passariam a ser praticamente automáticas para empresas ou instituições nacionais e junto a qualquer autoridade competente, não necessariamente no CGEN;
– A instituição do Fundo para Repartição de Benefícios de Recursos Genéticos e dos Conhecimentos Tradicionais Associados (FURB), para garantir a divisão coletiva dos benefícios;
– Também estabelece uma contribuição sobre a exploração de direitos intelectuais ou comercialização de produtos com recursos genéticos nacionais, que será direcionada ao FURB e ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).

Redação

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