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Não recuar frente às questões de sociedade

 

 

Inauguramos um novo conceito de Jornada, com a XVII Jornada da EBPMG. Não sabemos se será a primeira de uma série ou se toparemos essa empreitada uma única vez. Essa Jornada tem a ambição de demonstrar, em ato, a força política da psicanálise de orientação lacaniana, frente aos impasses de sua época.

 

O momento atual

Freud já previra que a psicanálise iria além do que acontece entre quatro paredes, que produziria, mais adiante, na sociedade, “uma tolerância social inédita, precisamente, no que diz respeito às pulsões.” Estamos, hoje, no “mais além” freudiano. Na entrevista, “A profecia de Lacan” (2011), lemos, com Miller, que o momento atual pode ser anunciado, nos seguintes termos: “Em nome de quê meu gozo seria menos cidadão que o seu?”. O direito ao gozo fez da adição um modelo da vida cotidiana, no século XXI, “o Um goza todo só com sua droga, e toda atividade pode tornar-se droga: o esporte, o sexo, o trabalho, o smartphone, o facebook.”[1]                                                                                                                                       

Nos últimos anos, em escala universal, o discurso capitalista impera e decreta para todos: Goze! Seja feliz! O sintagma “para todos” funciona como um orientador das políticas públicas e da gestão democrática. Objetos e políticas são fabricados em série, ao gosto do freguês. Entretanto, cada vez mais, brotam desse universo hedonista, aglomerados de Um(s) que falam sozinhos e vivem da vantagem de não precisar de ninguém, de não ter que responder a nenhuma instituição ou ideal, sendo bastante e suficiente a parceria solitária com o objeto do gozo, dispensando o laço social. Cada qual “no seu quadrado”, vivendo o autismo nativo do ser. A atualidade do sintoma se apresenta, então, ao modo das compulsões, depressões, da violência, acontecimentos de corpo e desamarrações diversas. Visando ao controle e ao bem estar social, as engrenagens da burocracia sanitária movimentam-se a mil por hora, pretendendo extirpar da ordem pública os novos sintomas por meio de um “novo higienismo”. A tática da segregação atualiza-se em novos campos de concentração, agora separados por diagnósticos, obra do discurso da ciência, como Lacan previra. O que pode a psicanálise na era do direito ao gozo? Na atual conjuntura e à sua maneira, a psicanálise luta para que cada um possa encontrar, no horizonte de sua análise, a força políticica que advém do elemento invariável que o causa, tornar-se responsável pelo seu modo de gozo, o mais singular possível, e saber fazer com isso no mundo em que habita. 

A clínica nos ensina que a política faz parte do percurso de uma análise, sempre que as estratégias, no manejo da transferência, e as intervenções do analista alcançam o gozo de cada um. Então, a política da psicanálise diz respeito ao ato analítico e suas consequências. Onde se fizer ouvir a ordem de ferro, totalitária e homogênea, ali o analista abre uma brecha, pela qual o que há de mais singular para o sujeito possa advir, como condiz à experiência analítica. De intervalos, lacunas, no espaço de um lapso: é com isso que a psicanálise se vira.

A força política da psicanálise também se apresenta quando o discurso analítico opera na relação com outros discursos, seja jogando sua partida com o seu avesso, o clássico discurso do mestre; seja enfrentando a fórmula alterada do amo moderno, o discurso capitalista, ou mesmo frente aquele universitário, o incansável técnico avaliador.

A política da psicanálise não é de direita, nem de centro, nem de esquerda. Ela é subversiva, ela visa à subversão do sujeito. Concordo com Miller, segundo o qual, à medida que a sociedade de controle é reforçada, impasses inéditos dão à psicanálise uma nova urgência, tanto ao nível terapêutico quanto àquele do pensamento.[2] Não temos a resposta sobre o que é o bem, qual é a solução, etc.

A resposta política da psicanálise, como veremos nesta Jornada, são os testemunhos públicos do passe e os fóruns de orientação lacaniana, intervindo a favor da solução singular, junto à diversidade de situações em jogo nas questões de sociedade. Acolher a diversidade é um modo de fazer surgir o irredutível, o elemento invariável em torno do qual giram os diversos discursos, e é essa evidência que faz abrir, na ordem de ferro, uma porosidade viva, por onde opera a força política da psicanálise, em favor do um por um. Essa é a nossa aposta, nesta XVII Jornada!

 

Política do programa: não recuar frente às questões de sociedade

O programa de trabalho, proposto para esses dias, seguiu a orientação da política da psicanálise, em jogo nessa Jornada. Nos trabalhos aqui publicados e que serão apresentados nas mesas plenárias e simultâneas, é evidente a manifestação da urgência que atravessa a experiência da psicanálise pura e aplicada, bem como seus efeitos, caso a caso. Assim, o programa desta jornada privilegiou o testemunho sobre os impasses atuais, questões de sociedade. Aliás, são questões que não tocamos sem provocar a discórdia da linguagem, a diversidade de discursos, a divisão entre campos, pois trazem, em seu âmago, o impossível de dizer das escolhas forçadas da pulsão.

É com esse espírito que realizaremos nosso I Fórum de Orientação Lacaniana “Drogas: para além da segregação” e a “Entrevista Aberta” com nossa convidada internacional Agnés Aflalo, sobre “A política da psicanálise na era do direito ao gozo”. Uma resposta e um convite para falar ao Outro de nossa época, como propõe Judith Miller, e não calar frente aos impasses que o interpelam.

Todavia, nos intervalos da conversa, o programa é circular por aí e topar com o indizível da política da psicanálise, inclusive na extensão de nossos campos de intervenção. Vale deixar o olhar cair pelas obras e telas da galeria da Mostra de Arte Insensata; atravessar com o corpo o desfile das letras que se soltam do andaime das palavras sem sentido; deixar-se perder nos livros da Livraria ou no meio dos objetos domésticos e guloseimas à disposição no Mercado Suricato. Quiçá apareça o objeto e o vazio pulsante que o define, inventando outro lugar para viver a pulsão. A política da psicanálise adverte: Há salvação pelos dejetos!

Afinal, a política da psicanálise, mais além do blá-blá-blá, apresenta-se na força material e libidinal da comunidade analítica, ao saber fazer com o impossível de dizer. Esperamos, ao final desta jornada, ter conseguido demonstrá-la.

Sejam bem-vindos à XVII Jornada da EBP-MG. Desejo que esta Jornada seja surpreendente, como convém à experiência analítica!


[1] MILLER, J.-A. Lacans prophecies. 2011. Disponível em: http://lacan.com/symptom12/?p=175.

[2] MILLER, J.-A. Lacan disait que les femmes étaient les meilleures psychanalystes. Et aussi les pires. Lacan Quotidiene, n.205, maio, 2012.

Redação

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